São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Horrores esquecidos no Timor Leste

RÉGIS BONVICINO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A invasão do território do Timor Leste, pela Indonésia, em 7 de dezembro de 1975, e posterior ocupação militar, à revelia dos timores e dos portugueses, diz respeito diretamente ao Brasil por várias razões.
A primeira delas pode ser encontrada no artigo quarto de nossa Constituição -que afirma que "A República" se rege, em suas relações internacionais, por, entre outros princípios, o da prevalência dos direitos humanos, o da autodeterminação dos povos, o da não-intervenção, o da igualdade dos Estados e do repúdio ao terrorismo e solução pacífica dos conflitos. É, além disso, o país signatária do "Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais", datado de 1966 -ratificado aqui em 24 de janeiro de 1992-, que determina aos Estados-partes a promoção do exercício à autodeterminação dos territórios não autônomos e sob tutela.
O Timor Leste se situa na chamada Insulíndia e ao norte da Austrália, abarcando a metade oriental da ilha de Timor e mais o enclave Oé-Cussi, na metade Ocidental -sob domínio holandês até 1949, quando de sua livre integração à Indonésia-, a ilha de Ataúro, para onde, literalmente, fugiram os governantes portugueses no dia 8 de dezembro de 1975, e o ilhéu Jacó. Porque este pequeno país, de 18.900 km2, de civilização austronésia, e (des)colonização portuguesa chama, hoje, a atenção do mundo, menos a dos brasileiros? Por um motivo econômico claro, mas estrategicamente pouco divulgado aqui: seus mares e terras são generosos em petróleo, constituindo-se numa das 20 mais ricas reservas do mundo.
Todavia o episódio da invasão, ainda em plena "Guerra Fria" (não à toa o presidente americano Gerald Ford e seu secretário Henry Kissinger estiveram em Jacarta, capital da Indonésia, na exata véspera da ocupação) revela um pouco, para nós brasileiros, o caráter das colonizações portuguesas.
Timor Leste foi descoberto em 1515 e para lá Portugal nunca enviou "administradores", escalando em seu lugar representantes da Igreja Católica (hoje os coordenadores da resistência). Passou a se interessar pelo território apenas por volta de 1899, quando descobriu que nele havia uma próspera cultura de café -da qual podia extrair tributos, para seus cofres "desindustrializados". Talvez nunca tenha levado a sério que lá havia uma enorme reserva de petróleo. Em 1974, quando da Revolução dos Cravos, que derrubou o salazarismo, por conveniência de circunstância, estimulou a "autodeterminação" de Timor -então com 30 kms de estradas asfaltadas e um dos maiores índices de analfabetismo do mundo!
Em quase 500 anos, Portugal não conseguiu estruturar o idioma português na Ilha (a "Cuba do Sudoeste", este o argumento de Suharto, que está no poder desde 1966, aos norte-americanos, para impedir a autodeterminação dos timores, então governados pela "Fretilin"), o que se, por um lado, facilitou a invasão indonésia, por outro permitiu a preservação de miríades de línguas que lá ainda sobrevivem.
Nas décadas de 50 e 60, o antropólogo Antonio de Almeida, registrou 31 grupos etnolinguísticos. Os indonésios, além de saquearem o país, levando de rádios até partes de casas e construções, não só reprimem a população local de falar, por exemplo, o Mambáe (150 mil falantes, em 1960) ou o Macassaé (70 mil falantes), bem como proibiram, a partir de 1976, quando Timor Leste foi "legalizado" como sua 27ª província, o uso do português. Este talvez seja, no momento, caso único no mundo.
Para a riqueza da humanidade, nenhuma língua, por nenhuma razão, é mais importante do que outra. Porém objeto de proibição e censura tem agora o português um "status" diverso e relevância especial para seus 200 milhões de falantes. É de se registrar também que, não sem motivos (a Indonésia é muçulmana e em parte islâmica), chineses da ilha foram todos mortos e uma de suas variantes linguísticas -o háká- foi extinta.
Rica em "detalhes", que vão do genocídio de populações de várias etnias (300 mil pessoas já foram mortas) ao uso do estoque perdido de "napalm" da Guerra do Vietnã, este ataque e ocupação se caracteriza, em sua inflexão totalitária, pela proibição da língua, então em 1975, falada por cerca de 50 mil timores, do "colonizador oficial" -relevando a intenção de recolonização e anexação definitivas. Aos brasileiros aponta, por outro ângulo, o tom formalista da cultura portuguesa: o português em Timor era utilizado para petições e requerimentos administrativos! O ataque indonésio só se deu, em parte, pela fragilidade da ação histórica dos portugueses: uma agricultura e produções artesanais arcaicas que persistiram e prescindiram do idioma do primeiro colonizador -o que demonstra seu caráter "regionalizante".
A língua do dia-a-dia de Timor era, também, ao lado de outras, e é (os indonésios agora o estimulam para combater o português) o Tétum. Entretanto a língua de Fernando Pessoa e Carlos Drummond de Andrade, desde 1975, virou o "emblema" da resistência à invasão, que não contava com o apoio nem do centro-direitismo local, na época ("UDT - União Democrática Timorense").
No entanto, esta anexação neocolonial, ("esquecida" pelos EUA por suas necessidades de terem, a qualquer momento, petróleo à mão, haja vista Kuwait, 1990!!!), que viola há mais de 20 anos direitos humanos e internacionais, encontrou, igualmente, na poesia, uma de suas formas de resistência. E de revitalização do português.
Leia-se o poema "Luta", de Fernando Sylvam, nascido em Dili, capital do Timor, em 1917, e morto em Cascais, em 1993. Sua brevidade e utilização de jogos anagramáticos de justaposição (Pássaro/espaço etc), nos informam que, ao menos é um poeta, "não oficial", e conseguiu interagir com as culturas austronésias e sínicas: "Pássaro sem espaço/ Rio sem leito/ Árvore sem floresta/ Mas dou sinais de mim!".
É a recuperação deste "espaço" multicultural, ainda formalmente território não autônomo sob administração de Portugal, o objeto de luta democrática de uma, pode-se dizer, sociedade civil mundial. Canadá, Dinamarca e Holanda condenam oficialmente a invasão e matança; cidadãos irlandeses e norte-americanos, especialmente da Califórnia, se engajam.
Há, para ficar em poucos exemplos, até cidadãos indonésios que querem a libertação de Xanana Gusmão, preso em Jacarta desde 1991, por ocasião do massacre de Santa Cruz, líder do antigo partido político "Frente Revolucionária de Timor Leste -Fretilin, "esquerda-, que, por força da anexação, se transformou numa frente armada de resistência ao "napalm", aos poderosos aviões Bronco e Skyhawk, usados pelo exército indonésio, que, além da altíssima tecnologia, se vale também de execuções públicas sumárias, com a cabeça de "rebeldes" penduradas em pedaços de pau e exibidas em praças.
Aos brasileiros cabe também lutar, de acordo com a Constituição, pela autodeterminação dos timores e pela dignidade da língua portuguesa -que, com este episódio, se mostra estratégica, para quaisquer fins, acentuando a importância de seu ensino aqui e difusão no exterior.
Se podemos nos chocar com os "estupros de guerra" que foram praticados na Bósnia, por que não podemos nos voltar contra os estupros praticados contra as mulheres timorenses? Se existe oposição à ditadura cubana, por que não nos voltarmos contra o suplício imposto a esses austronésios, que não podem circular pelas ruas de suas cidades e vilas depois das 9h da noite, sob pena de tiros de metralhadoras? Os timores do Leste superaram uma invasão japonesa (1942-1945). Vão também superar o presente quadro e, para nossa vergonha, vão revitalizar o português provavelmente sem nossa ajuda ativa.
Quero concluir com as palavras de um editorial do jornal americano "San Francisco Chronicle" (16/10/1996), que saudou o recebimento do Nobel por Carlos Ximenes Belo e por José Ramos-Horta, nos seguintes termos: "Premiando estes dois heróicos advogados da independência do Timor Leste, o Nobel chamou a atenção para a valorosa batalha pelos direitos humanos numa pequena Ilha, quase esquecida (...) Porém esta publicidade -mais do que nunca- oferece oportunidade à ONU e à comunidade de fazer intensa pressão sobre Suharto, para novas conversações a respeito da paz e da autodeterminação. Isto é o mínimo que o mundo pode fazer".

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