São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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A vida das mulheres medievais

JEAN M. CARVALHO FRANÇA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O que sabemos nós das mulheres? Foi com essa frase que, há 15 anos, o medievalista Georges Duby (1919-1996) pôs fim ao seu livro "O Cavaleiro, a Dama e o Padre", um estudo sobre as relações matrimoniais no século 12. Como explicaria mais tarde o historiador, numa das suas derradeiras entrevistas ("Magazine Littéraire", nº 348), a interrogação expressava um antigo desejo: o de empreender uma detalhada pesquisa sobre a vida das mulheres medievais.
Nessa mesma entrevista, Duby comentava que sabia das dificuldades que enfrentaria para concretizar esse projeto, pois os mais de 50 anos dedicados ao estudo dos séculos 10, 11 e 12 lhe ensinaram que a sociedade de então, militar e clerical, era composta por homens e que deles eram os rastros que haviam chegado às mãos dos pesquisadores. Tratava-se, portanto, de lidar com um conjunto de informações muito vagas e de empreender uma verdadeira batalha para dissipar a névoa espessa que encobria o lado feminino de um mundo essencialmente masculino.
Os resultados desses esforços podem ser apreciados em "As Damas do Século 12", obra que tem o segundo de seus três volumes agora publicado no Brasil. Nesse seu último trabalho, Duby procura dar a conhecer o que denomina figuras de mulher, figuras recolhidas em alguns poucos textos, todos escritos por homens. O leitor não deve buscar nesses livros descrições pormenorizadas de um suposto vivido real. A trilogia composta pelo medievalista traz à cena construtos, isto é, imagens de mulheres traçadas por autores muito mais interessados em moldar minuciosamente a sua matéria para vincular modelos de conduta e passar lições de moral do que preocupados em descrever objetivamente uma experiência cotidiana. Nesse sentido, "As Damas do Século 12", embora nos permita contemplar as silhuetas imprecisas de algumas personagens, é muito mais pródigo em demarcar o lugar que uma sociedade masculina conferiu às mulheres.
Para apresentar a sua galeria de figuras, Duby optou por partir das mais célebres, daquelas cujos contornos são um pouco menos apagados, e caminhar em direção às indistintas, às que se ocultam por detrás de um modelo.
No primeiro volume, são apresentadas seis damas de alta estirpe que, graças ao relato de um cronista ou de um confessor, escaparam ao anonimato. A partir da sobreposição dessas seis imagens mais nítidas, ficamos sabendo que os contemporâneos mantinham com as mulheres uma relação ambígua: por um lado, tomavam-nas como mais um dos muitos objetos que faziam parte dos seus haveres, um objeto que lhes havia sido outorgado por Deus e do qual podiam dispor ao seu bel-prazer; por outro lado, vislumbravam-nas como seres portadores de uma nocividade inata (responsáveis pelo pecado original), seres que deviam ser temidos e constantemente vigiados.
Neste agora lançado segundo volume, "A Lembrança das Ancestrais", Duby se debruça sobre os livros de linhagem e extrai daí a imagem que alguns padres e cavaleiros construíram das mulheres do seu sangue. Como procura demonstrar o historiador, esses genealogistas gostavam de imaginar que as suas antepassadas tinham sido dóceis, submissas e, sobretudo, honradas -honradas menos pelos seus méritos próprios do que pela glória dos maridos a que serviram e pelos filhos que puseram no mundo.
Essa lembrança idealizada, porém, revela nas suas nuanças que as damas não eram totalmente desprovidas de poder. E isso por pelo menos três razões. De saída, porque as linhagens, em geral, começavam com a união entre um guerreiro vagabundo, vindo de parte incerta, e uma mulher sedentária, cujos antepassados detinham terras e prestígio.
Era, pois, a esposa que conferia nobreza e riqueza a uma casa. Mas não só. Numa sociedade de guerreiros, em que os homens estavam quase sempre ausentes dos seus torrões natais, cabia às mulheres a delicada tarefa de administrar a casa, incumbência que, não poucas vezes, lhes conferia uma autoridade quase tão grande quanto a do senhor ausente ou morto. Por fim, revelam as genealogias que algumas antepassadas, especialmente aquelas que envelheciam honradamente e conduziam com sapiência a sua viuvez, acabavam por desfrutar de uma áurea de santidade e, por essa razão, eram temidas, respeitadas e mesmo cultuadas no seio das famílias.
No terceiro volume, "Eva e os Padres", entram em cena aquelas figuras femininas retratadas pelos membros do clero. No século 12, informa-nos Duby, a Igreja começa a interessar-se pelas mulheres, a falar mais vezes delas e com elas. Esse súbito interesse esteve na origem de uma farta literatura sobre as damas, as suas poucas virtudes e os seus muitos pecados. É nessa literatura que o medievalista vai buscar elementos para traçar o esboço mais acabado da noção que os homens medievais tinham das mulheres. Eva, paradigma de todas as pecadoras, surge então com a sua dupla face: uma, atraente, que seduz, fascina e promete inúmeros prazeres; outra, assustadora, que a todo momento recorda a Adão os apelos da carne e os caminhos que conduzem inevitavelmente à perdição da alma.
Pouco a pouco, ao longo dos três volumes de "As Damas do Século 12", o leitor dá-se conta de que está diante de um processo evolutivo. Duby, com a erudição que todos conhecemos, vai sutilmente assinalando as brechas de uma sociedade que procurou sempre manter as filhas sob o controle dos pais, as esposas sob a tutela dos maridos e as viúvas circunscritas aos claustros.
Ao fazê-lo, o historiador nos permite acompanhar as mutações profundas ocorridas nas relações entre os homens e as mulheres medievais, mutações que atingem o seu clímax por volta de 1180, com o aparecimento do amor cortês. Como destaca o medievalista, o finamor, ao conferir à dama cortejada uma posição de destaque no interior do jogo amoroso -ela passa a ocupar o lugar de suserano, e o cortejador, o de vassalo-, marca um avanço considerável na condição social da mulher.

Jean Marcel Carvalho França é mestre em sociologia da cultura, doutor em literatura comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador na Universidade Nova de Lisboa (Portugal).

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