São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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Poemas herméticos e angustiados

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fábio de Souza Andrade teve uma grande coragem neste livro: a de enfrentar, como crítico, as obras mais difíceis da última fase do poeta Jorge de Lima (1895-1953), o "Livro de Sonetos" e, principalmente, "Invenção de Orfeu".
Jorge de Lima começou como festejado poeta parnasiano, passou ao modernismo sem problemas, usando do ritmo livre e do retrato breve em seus poemas "negros", foi médico e converteu-se ao catolicismo junto com o poeta Murilo Mendes.
Fábio de Souza Andrade analisa, num capítulo deste livro, as diferenças e proximidades entre Jorge de Lima e Murilo Mendes. Os dois publicaram um livro conjunto na década de 30, "Tempo e Eternidade", que visava, segundo eles, "restaurar a poesia em Cristo".
Mas, enquanto Murilo Mendes, em sua produção posterior, seguiria o rumo da vanguarda, expressando o misticismo pessoal em poemas geométricos, "modernos", "cristalinos", mais irônicos, Jorge de Lima parece ter mergulhado num mangue noturno de poemas imensos, herméticos, angustiados, não raro usando de formas clássicas como o soneto.
O interesse de Fábio de Souza Andrade pela poesia final de Jorge de Lima não parece motivado apenas pela dificuldade, pelo desafio que há em interpretá-los, mas também por uma opção, diríamos, quase programática. Se, há coisa de uns dez anos, os poetas mais jovens pareciam optar pelos modelos do modernismo de 22 -o poema curto, desmistificador, epigramático-, hoje parece haver uma expectativa de que o pêndulo retorne ao "modernismo classicizado", ao verso longo e mesmo a tinturas neo-surrealistas.
Fábio de Souza Andrade faz uma interessante comparação entre as técnicas da montagem e da fragmentação na poesia moderna e aquelas utilizadas pela pintura, tomando como fio condutor a obra do pintor surrealista Max Ernst. Abandonando a colagem "bruta" -pedaços de jornal, botões, tecidos fixados diretamente na tela- em favor de uma montagem "retrabalhada", em que se volta ao pincel e às tintas para criar uma representação do fragmento reconstruído, haveria em Max Ernst, como em Jorge de Lima, uma forma de vencer, de interiorizar, de "repoetizar", digamos assim, o jogo um tanto mecânico do choque e do fragmento puro.
Mas uma coisa é a valorização programática de uma poesia rica em imagens, que retoma formas clássicas, como a de Jorge de Lima. Outra coisa é o esforço interpretativo real. E aqui as coisas se complicam muito para o crítico -para qualquer crítico.
Tome-se este soneto: "Este é o marinho e primitivo galo/ de penas reais em concha e tartaruga./ Com seu concerto afônico me embalo,/ turva-se o vento, o Pélago se enruga.// Silencioso clarim, mudo badalo,/ dos ruídos e ecos rápido se enxuga./ Jorra o canto sem voz de seu gargalo/ e se encrespa no oceano em onda e ruga.// Galo sem Pedro, em pedra vivo galo,/ de córneos esporões de caramujo,/ -tubas dos espadartes e cações.// O dia sem mistério, seu vassalo,/ esvai-se no seu bico imenso, em cujo/ som as brasas da crista são carvões".
O autor analisa por umas oito páginas este poema, mas não se pode dizer que tenha vencido a obscuridade extrema do texto. O que dizer, então, da vasta epopéia em milhares de versos, a "Invenção de Orfeu" inteira? Que o livro "serve à demonstração de uma impossibilidade (reviver modernamente a epopéia, senão de maneira fragmentária e internamente contraditória) e uma necessidade: a preservação do poder de revelação da poesia, espécie de substituto moderno do mito que impede uma naturalização completa da linguagem e sua total assimilação ao mundo cotidiano".
O problema que o autor enfrenta, o da obscuridade de muita poesia moderna, não é mesmo fácil de resolver. Muitos modelos teóricos ou "reescrevem" o poema falando de seus "temas" -a morte, a pedra, a noite, por exemplo- ou tomam o poema como exemplo, um entre muitos, de alguma lei mais ampla a respeito do funcionamento da linguagem ou da evolução histórica. Mas como "explicar" um texto que parece ter sido feito exatamente para desnortear qualquer explicador?
Há uma questão adicional, a de que, neste livro, o próprio autor oscila entre ser "explicador" e "coadjuvante" nos mistérios do poeta alagoano. O que não equivale a falar mal do livro. Fábio de Souza Andrade é um crítico capaz de mexer com assuntos importantes, de buscar os mais variados suportes teóricos e de escrever muito bem.
Seu livro é estimulante, mas a ele se aplica muito do que ali está dito sobre o próprio Jorge de Lima: ilustra uma necessidade e um limite ao mesmo tempo (no caso, a necessidade e a impossibilidade de entender o poema). Quem sabe ele venha a encontrar a resposta.

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