São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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O rapaz mais simples do mundo

CARLOS AUGUSTO CALIL

a 28 de maio (de 1923), Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade visitavam Blaise Cendrars na sua intimidade, o modesto apartamento em que viviam Raymone, sua musa e amada, e a mãe dela, "Mamanternelle", na rue du Mont-Dore (Paris). Com a dedicatória "à Madame Tarsila do Amaral en souvenir de sa bonne visite au Mont-Dore", Blaise oferecia à nova amiga um raro presente: um óleo sobre cartão ("Tour Eiffel") que pintara -com a mão direita- em 1913, quando ficou imobilizado num quarto do Hôtel du Palais por quase um mês devido a uma perna quebrada.
Robert Delaunay vinha vê-lo todos os dias; foi ele quem lhe forneceu tintas e pincéis para que também tentasse captar a torre. "Eu via pela janela (do hospital) a Torre Eiffel como uma garrafa de água cristalina...".
Nesse ano concentrou-se em Paris a tropa de choque modernista -Sérgio Milliet, Di Cavalcanti, Victor Brecheret, Sousa Lima, Villa-Lobos, Anita Malfatti, Tarsila, Oswald-, enquanto Paulo Prado chegava, como era seu hábito, para aí passar o verão.
O fervilhante ambiente intelectual de Paris estimulava os brasileiros a consolidar e ampliar as conquistas da primeira hora. Travam conhecimento com Cocteau, Jules Romains, Juan Gris, Supervielle, Valéry Larbaud, Paul Morand, Giraudoux, Ivan Goll etc., mas a simpatia é imediatamente dirigida a Blaise Cendrars, que compartilhava com eles uma disponibilidade feroz e despojada.
Sérgio Milliet, o melhor cronista desses dias fabulosos, relatou -em francês- ao amigo Yan de Almeida Prado, que havia permanecido no Brasil:
"Oswald a fait une conférence à la Sorbonne. Auditoire nombreux. Ambassadeurs, artistes. (...) Cendrars c'est beaucoup interessé à nous. Je dois un de ces jours aller chez lui en lire des poèmes brésiliens de Mário, Tácito, Guy, Couto, Aranha, Ronald, Menotti etc..." (Oswald fez uma conferência na Sorbonne. Auditório numeroso. Embaixadores, artistas.(...) Cendrars se interessou muito por nós. Um dia destes devo ir a sua casa ler poemas brasileiros de Mário, Tácito, Guy, Couto, Aranha, Ronald, Menotti etc.).
Em junho, no seu ateliê da place Clichy -"umbigo do mundo"-, Tarsila oferecia um almoço brasileiro a Cendrars. Em carta à família, a pintora se refere ao convidado "como o maior poeta francês atual: o mutilado de guerra Blaise Cendrars que com toda a sua incontestada grandeza é o rapaz mais simples do mundo".
A empatia que então se estabelece é também de natureza estética, e Cendrars se torna o guru da moçada brasileira. Mais uma vez Sérgio Milliet, na "Carta de Paris", publicada na revista "Ariel", SP, outubro de 1923, dá o seu testemunho:
"Vai um poeta pelas ruas. Caminha a esmo, de repente pára: sobre a sarjeta de sua imaginação brilhou uma chave de ouro. Ei-lo satisfeito, feliz; pode com ela fazer um soneto bem acabadinho, abrir um coração. Pois não abre. Faz de 13 versos um papel de embrulho, e o resultado é que o leitor poderá ter uma impressão favorável quanto à técnica, mas não ressentirá nenhuma comoção profunda. Esse poeta moderno desconhece o papel de embrulho, já há muito se retirou dos secos e molhados e, quando encontra uma chave de ouro, guarda-a à espera de outra. Um dia terá formoso conjunto onde o leitor encontrará a sua entre as muitas chaves que lá estão. Assim é Cendrars".
Criado o elo espontâneo e natural, a influência de Cendrars se fez sentir imediatamente. A convite de Blaise, Sérgio Milliet assiste à "Criação do Mundo", encenado pelos Ballets Suédois. Esse balé "negro" tinha libreto de Cendrars, música de Milhaud e cenários de Léger.
Milliet, em carta a Yan, menciona a idéia de criação de um "bailado brasileiro", que se chamaria "Morro da Favela", para ser encenado pelos Suédois. O libreto estaria a cargo de Paulo Prado, desenhos e figurinos de Di Cavalcanti, música de Villa-Lobos. A iniciativa parece ter sido de Oswald; Cendrars, consultado, achou a "idéia boa e possível".
Além do balé negro, desse mesmo ano, Cendrars havia publicado uma "Anthologie Nègre", em 1921, e os "Poèmes Nègres", no ano seguinte. O tema da arte negra na moda, foi Tarsila, com a liberação do seu inconsciente, quem sinalizou o alinhamento à nova onda ao dar forma à "Negra", entidade propiciatória da nova fase da sua pintura, que ainda absorvia a lição cubista de Léger.
Cendrars sentiu o impacto da confirmação do talento de sua amiga, a quem devotava um especial afeto. A partir desse momento, irá acompanhar de perto os passos dela na construção de sua obra, que será publicamente reconhecida na exposição da galeria Percier, em 1926, realizada sob estrita vigilância do escritor. Mas Cendrars guardará fidelidade -apesar de seu encantamento com "Morro da Favela", tela que, aliás, lhe pertenceu- à essa "Negra" inaugural, para quem reservaria a capa de seu livro de poemas sobre a viagem brasileira: "Feuilles de Route". Em torno de seu tema, Blaise esboçou sucessivas capas para o boneco de seu livrinho.
Oswald de Andrade, entusiasmado com o amigo novo, apresenta-o a Paulo Prado na livraria Americana, de Chadenat, situada no quai des Grands-Augustins. Prado aceita a sugestão de Oswald e pede a Sérgio Milliet que convide Cendrars para vir ao Brasil. Oswald lhe acena com negócios na América para tornar a viagem ainda mais tentadora. E Blaise obtém a credencial de um jornal, para uma série de reportagens nos antípodas.
Ao expansivo Di Cavalcanti, Cendrars pede cartas de apresentação. Nelas Di insiste com os amigos para que evitem intelectuais:
"Cendrars aí no Brasil não pode ficar no meio de literatos comprometedores. Ele precisa conhecer o nosso cerne, os costumes característicos do Rio, (...) leva-o aos Democráticos", diz a Oswaldo Costa; a José Mariano Filho pede que "mostre ao Blaise Paquetá" e informa que o escritor, que viaja como repórter do "Excelsior", "deseja fazer umas entrevistas sobre a nossa flora e sobre os nossos antigos monumentos". Cendrars não precisou dessas cartas, nem sequer as abriu.
A 12 de janeiro de 1924, embarcava no Havre a bordo do cargueiro Formose, com destino ao Brasil. (...)
"É o Paraíso terrestre..."
Embalado pela chegada do calor e pela luminosidade crescente, Cendrars retomava a bordo alguns projetos antigos -de balé, poesia e romance. Quando cruza a linha
do Equador já é um novo homem que vislumbra o "Paraíso terrestre"; telegrafa à amiga-musa em Paris para transmitir-lhe a sensação recém-conquistada: "Il fait bon vivre". Sob o lema "Viver faz bem", Cendrars entrega-se com generosidade a uma experiência que irá lhe ampliar a percepção e contribuir para o seu amadurecimento enquanto homem e escritor.
"Passeio no convés com meu terno branco comprado em Dacar (...)
Estou limpo lavado esfregado mais do que o convés
Feliz como um rei
Rico como um milionário
Livre como um homem" ("Etc..., Etc... - Um Livro 100% Brasileiro". Trad. de Teresa Thiériot. Ed. C.A. Calil).
"Chez nous"
Instalado no Hotel Victoria do Largo do Paissandu, Cendrars começa a conquistar os meios literários e cultivados da Paulicéia pacata e provinciana.
Frequenta o salão de dona Olívia, que lhe oferece um jantar de boas-vindas. Não sai da casa de Paulo Prado, é recebido por René Thiollier que lhe oferece um "gâteau Cendrars", por Freitas Valle na sua Villa Kyrial, onde dá uma conferência: "Como fiz minha 'Antologia Negra' ". Circulando com desenvoltura no meio da alta burguesia de São Paulo, ele não está menos à vontade na roda dos jovens escritores boêmios, com os quais sai para beber, ir ao cinema, ou ao circo de Piolim.
A pedido de seu hóspede, que não esquecia a remuneração prometida pelo jornal "Excelsior" para os seus artigos, o grupo leva-o para conhecer o Carnaval do Rio e os monumentos do ciclo do ouro das Minas.
Passam a Semana Santa em São João del Rei e Tiradentes, em cuja cadeia Cendrars encontra o assassino que arrancou o coração da sua vítima e o comeu, por ele transformado no lobisomem do seu "Elogio do Risco da Vida".
Via Divinópolis, o grupo visita Sabará e Belo Horizonte. Aí, os viajantes entram em contato com os jovens modernistas de Minas: Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura, João Alphonsus, Pedro Nava, Francisco Martins de Almeida, Abgar Renault. Em Lagoa Santa, o secretário da Agricultura mineiro, Daniel de Carvalho, oferece aos visitantes, em nome do governo do Estado, terrenos nas proximidades desse local: as "terras brasileiras" de Cendrars.
A excursão prossegue por Mariana e Ouro Preto. No passeio a Congonhas do Campo, o Santuário do Bom Jesus provoca esmagadora impressão no grupo. Diante da melhor escultura do século 18, das histórias do Aleijadinho -o mutilado genial- e da fundação de Congonhas em torno do santuário de Bom Jesus de Matosinhos, Cendrars reagia com um indefectível porém espontâneo "Quelle merveille!". A marca profunda dessas paisagens desoladas só será percebida pelos contemporâneos quando a obra futura denunciar o seu impacto na memória do estrangeiro. Mário de Andrade, Tarsila e dona Olívia, além de Cendrars, são os mais afetados pela deterioração desse tesouro colonial.
Na bagagem da comitiva não podia faltar câmera fotográfica -não a Kodak de Cendrars, que só tirava retratos verbais, mas as de Gofredo da Silva Teles e de Nonê (Oswald de Andrade Filho).
Assim que retornam da viagem a Minas, ainda sob o impacto do abandono a que estavam relegadas as igrejas e esculturas do Aleijadinho, o grupo modernista que se reunia semanalmente no salão de dona Olívia resolve agir em favor da inadiável preservação do patrimônio histórico.
Cendrars é então incumbido de redigir os estatutos de uma "Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil". Concebe uma estrutura privada para agir -resguardada por uma lei- em nome do Estado, que seria capaz de identificar, tombar, aprovar e controlar as obras de restauração, desapropriar os bens para sobre eles exercer a proteção pública, estimular e constituir museus em nível regional e nacional. Cendrars não esquece de incluir as fontes de receita e, principalmente, os meios de divulgação e propaganda mais modernos em 1924, como o cinema e a gravação de discos de música popular.
O aspecto visionário do projeto é, assim, ancorado em uma proposta capitalista que imagina poder desenvolver o turismo cultural, a demanda pelos museus e a exploração comercial das festas populares, particularmente do Carnaval, que, então, se baseava no desfile das sociedades.
O partido da intervenção pública é francamente anglo-americano, longe do paternalismo e da burocracia centralizada que caracterizam as ações de governo dos países latinos, e que seriam por nós adotados, 12 anos depois, com a implantação do SPHAN - Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a partir do projeto de Mário de Andrade.

O texto acima foi extraído do catálogo da exposição sobre Blaise Cendrars promovida pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

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