São Paulo, domingo, 3 de agosto de 1997
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UMA EXCEPCIONAL EXCEPCIONAL

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA

Quando está carente, a projetista Temple Grandin entra em uma máquina inventada por ela, em forma de "V", e aperta alguns botões: o aparelho fecha-se sobre seu corpo e um estofo macio é inflado vagarosamente. Lá dentro, ela sente uma pressão uniforme e agradável, como se fosse um abraço.
A "máquina de abraços", que fica ao lado da sua cama, serve para compensar a hipersensibilidade de Temple ao toque -que transforma contatos físicos em tortura e é uma das características do autismo.
A engenhoca é também uma prova da criatividade e inteligência excepcionais de Temple, uma autista que, aos dois anos, recebeu um diagnóstico fatalista de "danos cerebrais", e hoje, aos 50, é professora universitária nos EUA, com PhD em ciências animais, e projetista de renome internacional na área de equipamentos para fazendas de gado.
A professora foi descrita pelo famoso neurologista inglês Oliver Sacks no livro "Um antropólogo em Marte", título dado em sua homenagem -ela se define assim, já que se sente uma estranha tentando entender o mundo dos "normais". O médico -interpretado por Robin Williams no filme "Tempo de Despertar"- vem ao Brasil neste mês para uma série de palestras (leia texto à pág. 13).
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A sensação de ser "extraterrestre", descrita por Temple, vem de uma das principais -e menos conhecidas- deficiências provocadas pelo autismo: a incapacidade de entender emoções. Como mostra o psicólogo norte-americano Simon Baron-Cohen, em seu recente livro "Mindblindness", os autistas são "cegos para a existência de outras mentes".
O que aprendemos instintivamente para eles é um mistério. Não entendem sutilezas, linguagem corporal, segundas intenções ou ironias. Uma criança autista vai se jogar embaixo da mesa se um parente comentar que "hoje vai chover canivetes". E se a mãe fizer uma careta e disser "que bonito, heim!" depois de uma travessura, ele concluirá que a mãe aprovou sua brincadeira.
Os autistas não entendem também paixões e tristezas. "Não compreendo como alguém pode sentir ciúme e amor ao mesmo tempo", disse Temple, em entrevista à Revista da Folha, por telefone, de Fort Collins (Colorado, EUA).
Temple tem dificuldade de estabelecer empatia com as pessoas ou personagens de um livro, de acompanhar o jogo intricado de motivos e intenções. Ela conta que leu e ficou desconcertada com Romeu e Julieta, mas "nunca entendeu o que eles queriam".
É capaz apenas de entender emoções "simples, fortes e universais", como as de uma criança, mas fica confusa com as mais complexas. "A principal emoção de um autista é o medo, o mais primitivo dos sentimentos humanos", disse Temple.
Para sobreviver, a projetista aprendeu teoricamente como funcionam as emoções, mas sem necessariamente senti-las. Decorou convenções e códigos sociais. "Não leve um autista para uma happy-hour. Ele não saberá como agir e poderá entrar em pânico", explica Temple.
Quando vê, por exemplo, lágrimas escorrendo no rosto de alguém, ela sabe que isso significa que a pessoa está triste porque aprendeu intelectualmente -como nós aprendemos que "dois mais dois é igual a quatro".
Banco de dados no cérebro
Outra característica interessante da mente de Temple, descrita por ela mesma com distanciamento e frieza, é como se organiza sua memória -tema de seu último livro, "Mind in Pictures" ("Pensamento em Imagens"), recentemente lançado nos EUA.
"Eu penso de forma visual. Todos os meus pensamentos são 'fotos' guardadas na minha cabeça. Minha mente funciona como a Internet: as imagens armazenadas não se misturam, mas estão ordenadamente 'lincadas' e associadas como as 'web pages'. Penso de forma associativa e não linear ou sequencial, como as outras pessoas", disse.
Temple explica que não mistura lembranças. "Se peço, por exemplo, para você pensar em uma igreja, tende a vir à sua mente uma idéia generalizada do que é uma igreja. Eu só vejo igrejas identificáveis, às quais posso dar nome: a que frequentava quando criança, a da minha rua etc. Não consigo ter um conceito generalizado de igreja na cabeça. A maioria das pessoas pega todas as imagens de igrejas e deixa que se misturem. As minhas não." Sua cabeça é um enorme banco de dados, e sua memória, prodigiosa.
Sem emoções complexas e com um cérebro organizado como um computador, seria de se esperar que a autista Temple Grandin se comportasse como um robô. Pelo contrário.
O fato de viver em um "planeta estranho" e por ter uma inteligência extraordinária, Temple fascina e emociona os "normais". Seus sentimentos "primitivos" lhe dão inocência e sinceridade. Se tem dificuldade de compreender as "paixões humanas", tem grande compaixão pelos animais, especialmente o gado -ela criou abatedouros que permitem uma morte menos cruel.
Com seu olhar estrangeiro, nos faz pensar sobre o nosso próprio mundo. "Não entendo, de forma alguma, como uma mulher pode continuar amando um marido que a espanca", disse Temple.
A clareza sobre suas próprias deficiências -a ponto de fazê-la inventar uma "máquina de abraços"- impressiona qualquer um que tenha passado anos no divã de um psicanalista. "É fascinante, mas é uma das próprias características do autismo. Ela fala melhor das dificuldades dela do que eu das minhas porque ela é autista. Ela se vê de uma forma clínica, fria, científica. Eu não falaria da mesma forma, se tivesse um filho autista", explica o neuropediatra José Salomão Schwartzman.
Com uma fala pausada e quase sem entonação, Temple deu a seguinte entrevista à Revista:
*
Revista: A forma como a sua memória funciona ajuda no seu trabalho?
Temple: Existem coisas que faço muito bem, melhor que a maioria das pessoas. Outras, já não faço tão bem. Trabalho muito para a indústria de abatimento. Consigo resolver rapidamente qualquer problema em abatedouros. Às vezes, estavam tentando resolver o problema há meses, mas eu resolvo-o imediatamente porque simplesmente puxo da minha cabeça meus "quadros" e me lembro de uma situação semelhante que vi há algum tempo.
Revista: Você acha que educação foi fundamental no seu desenvolvimento?
Temple: Sem dúvida. Crianças com autismo ou dificuldades de leitura como dislexia precisam ter acesso a uma excelente educação, o mais cedo possível. Foi o meu caso. Quando tinha dois anos, não conseguia falar. Meus pais me colocaram em uma ótima classe de fonoterapia. É importante manter crianças autistas ocupadas, porque elas tendem a se retrair e agir de forma estranha. Agem assim porque o som machuca seus ouvidos, e ser tocado também dói. Os sentidos delas são hipersensíveis. Viver é como estar dentro de um amplificador, em um concerto de rock. É superbarulhento.
Revista: Como foi feito o seu diagnóstico?
Temple: Quando era criança, meu médico não sabia o que era autismo, então fui diagnosticada como tendo danos cerebrais. Sete anos depois, veio o diagnóstico correto. Mas fui para o colégio e, se não fosse pela paciência dos meus pais e professores, estaria sentada em um canto balançando meu corpo para frente e para trás até hoje. O problema é que, quanto mais a criança se retrai, mais ocorrem estragos: o cérebro precisa sofrer estímulo do ambiente e interagir com outras pessoas para se desenvolver.
Revista: Como você aprendeu a viver em sociedade?
Temple: O autista tem de aprender todas as interações sociais por memorização, como o Data, do "Jornada nas Estrelas", que teve de aprender como ser humano. Precisa aprender todas as coisinhas que os outros simplesmente fazem. Se alguém te provoca, você sente uma pequena emoção e reage. Eu não sinto isso. Racionalmente penso: "Ôpa! Essa pessoa vai estourar comigo daqui a pouco. O que faço?" Não capto as pequenas sutilezas e a linguagem corporal que as pessoas sabem instintivamente. Tive de aprender gradualmente como pensam os outros que são diferentes de mim, mas demorou muito. Estudei em um colégio normal, mas era um colégio muito pequeno.
Revista: Você não sente emoções?
Temple: Minhas emoções são como as de uma criança de oito anos. São simples, não tenho sentimentos complexos. Não entendo de forma alguma como uma mulher pode estar casada com um homem que bate nela, não entendo como você pode ter ciúmes e amar uma pessoa ao mesmo tempo. Posso estar feliz ou triste.
Revista: E medo?
Temple: É a principal emoção de um autista. Nós tendemos a ter alto grau de ansiedade. Medo é a mais primitiva das emoções. Os bichos sentem medo. Os animais com os quais consigo me relacionar melhor são o gado e os antílopes, que passam o tempo todo olhando ao redor à procura de predadores. O que é importante na vida para mim gira em torno do intelecto. Estou preocupada com o que penso sobre determinado assunto e não o que sinto a respeito dele. Choro, me sinto triste ou brava, mas é muito mais simples. Minha vida é o meu trabalho, projetar coisas e fazer desenhos.
Revista: Você tem amigos?
Temple: Pessoas são importantes para mim no sentido de que partilho interesses com elas. A maioria dos meus amigos são técnicos, então conversamos sobre o trabalho.
Revista: Como você consegue viver sozinha?
Temple: Dirijo, cozinho, sem problema. Autismo é uma desordem neurológica muito variável. Pode variar de um caso leve, como o meu, a um grau muito sério, com muitos danos cerebrais, onde a criança, bastante incapacitada, nunca vai chegar aonde eu cheguei. Mas o meu caso era sério o suficiente e, se eu não tivesse recebido a educação que recebi tão cedo, não estaria aqui agora. Conheço outras pessoas com autismo que conseguiram se formar na faculdade e outros que conseguiram diploma de doutor, como eu.
Revista: Como você enfrenta o preconceito?
Temple: Os EUA são líderes na quebra de preconceitos. Mas você tem de reconhecer os limites dos portadores de autismo. Um autista pode, por exemplo, trabalhar em um jornal como diagramador. Ele pode ser excelente nesse trabalho, mas não o transforme em gerente, nem como promoção. Você deve dar a ele uma meta bem definida, uma tarefa clara. Não o coloque em situações sociais complicadas, ele pode parecer um homem crescido, mas ainda é uma criança. O problema do autista é que ele pensa: como devo me comportar em determinada situação? Ele então dá uma busca no "banco de dados" que tem dentro de sua cabeça e acha uma situação semelhante que viveu antes e age da mesma forma. Mas, se ele entra em uma situação totalmente nova, ele não sabe como agir. Entra em pânico, pode ter um acesso de cólera, explodir. Se torna um animal, pode bater em alguém.
*
Perguntada sobre como imagina ser "estar apaixonada", Temple disse ao neurologista Oliver Sacks: "Talvez seja como ter uma síncope -se não, não sei".

PARA SABER MAIS
Livros de Sacks
"Um Antropólogo em Marte" (Cia. das Letras, 1996, R$ 27,50)
Lançamento: "Ilha dos Daltônicos" (Cia. das Letras, 1997, R$ ???). Nas livrarias a partir do dia 5.
Relançamento: "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu" (Cia. das Letras, 1997, R$25). Nas livrarias a partir do dia 15.
Livros de Grandin
"Thinking in Pictures" (Doubleday Publisher, NY, 1995, US$ 22,95). Sem edição brasileira.
"Emergence: Labeled Autistic" por Temple Grandin e Margaret Sacarino (Arena Press, EUA, 1986) Sem edição braileira.
Outros
"Mindblindness" por Simon Baron-Cohen (MIT Press, EUA, 1997, US$ 22,50)

Associação More Able Autistic Person
Publicam boletim quadrimestral e realizam conferência anual sobre o assunto. Tel. (001) (219) 662-1311 - Indiana, EUA

Internet
www.grandin.com (site de Temple sobre seu trabalho com gado)
autismo: autism.org (site sobre autismo com artigos de Temple)

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