São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997 |
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De onde vem a utopia
CELSO FURTADO O melhor que podemos esperar de um livro é que nos incite a pensar sobre coisas novas. E quando um livro nos convida a penetrar no sentido da história que nos cabe viver, como é o caso de "O Futuro do Capitalismo", devemos ficar agradecidos. Seu autor, Lester Thurow, é um estudioso da economia contemporânea, a quem já devemos obras importantes. Neste livro ele vai mais longe que em suas obras anteriores, mais circunscritas à dinâmica do capitalismo e das relações competitivas entre as economias de vanguarda.O que mais chama a atenção do leitor corrente dessa obra tão bem fundamentada é que o autor ignore, na caracterização do capitalismo -sistema de dominação social-, a dimensão mais específica deste, que é a luta de classes. A "tecnologia" e a "ideologia" seriam simples aflorações, sem raízes profundas na lógica do sistema. Para que exista uma "sociedade democrática", aspiração máxima do homem moderno, é necessário que se produza a conjunção de uma economia de mercado com um sistema político aberto e participativo. E isso não se confunde com "capitalismo", como deixa implícito o autor. O sistema de produção capitalista é perfeitamente compatível com o fascismo, que é a expressão mais cabal de sociedade fechada e não-participativa de que temos memória. A construção da sociedade democrática, horizonte utópico por que aspiram os homens desde a época clássica grega, requer a conjunção de processos históricos engendrados por duas forças: o individualismo, alimentado pela economia de mercado, e a disciplina, que só as sociedades participativas e abertas engendram. Escapa a Thurow que a sociedade moderna não é uma criação do capitalismo, e sim a resultante histórica de um complexo processo de luta de classes. Forças econômicas cavalgando o avanço das técnicas criaram o crescente fluxo de riquezas, levando a crises periódicas que exigiram a ampliação dos mercados. Coube a movimentos sociais organizados forçar a elevação dos salários reais, a qual conteve o processo de concentração de renda inerente ao capitalismo. Portanto, o que conhecemos como sociedade de massas é fruto do processo dialético produzido pelo capitalismo e pelas forças sociais que a ele se opuseram, criando a utopia de uma sociedade igualitária. Thurow capta parcialmente o problema, quando diz que "o socialismo e o Estado de Bem-estar haviam operado como fonte de novas idéias". Prossegue ele: "agora, o socialismo está morto e o Estado de Bem-estar está quebrado". E interroga: de onde viriam, doravante, as utopias? Ignorar o papel das lutas de classes e dos conflitos sociais na moldagem das sociedades democráticas, e atribuir o dinamismo destas a forças difusas e alheias ao contexto histórico, emanações da tecnologia e da ideologia dominante, é resvalar para uma visão da história em que os homens são simples joguetes do destino. O processo de globalização traduz a preeminência das grandes empresas em detrimento dos Estados nacionais. Estes, contudo, longe de desaparecerem, assumem novas funções, pois lhes cabe monitorar a emergência de um novo padrão de distribuição de renda. A vanguarda desse processo pode ser vislumbrada nos Estados Unidos, onde tem lugar o mais intenso processo de concentração de renda ocorrida nos países industrializados no presente século. Esse processo de concentração de renda, acoplado a outro de exclusão social, marcha paralelamente a uma relocalização planetária da atividade industrial. As projeções dessas profundas reacomodações das estruturas políticas é que permanecem obscuras. Mas não pode haver dúvida de que o papel das forças sociais organizadas, que tanto relevo teve no passado, estará novamente no primeiro plano e, já agora, na esfera internacional. Próximo Texto: Recepções de Nietzsche Índice |
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