São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997
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O ovo da serpente

MARIA VICTORIA BENEVIDES

era o golpe de 64 inevitável? Por que não houve reação popular, já que o movimento sindical era forte e ligado ao presidente? Aliás, quem era "povo" no Brasil naquela época? O que aconteceu com o supostamente leal e infalível "dispositivo militar"? Por que João Goulart, que incendiara corações e mentes no comício da Central, recusou o enfrentamento e preferiu o exílio? Por que a classe média, em geral medrosa e enfurnada (sobretudo em sociedades muito desiguais como a nossa), revelou-se tão assanhada e "marchadeira"? Qual a responsabilidade dos comunistas, então quase na legalidade? Terá havido mesmo a tal aliança estudantil-sindical-camponesa, de fé revolucionária? E os empresários da decantada "burguesia nacional", por que aderiram a um novo pacto de dominação no qual sairiam perdendo para a direita gorda e sinistra dos quartéis e do capital internacional? O que aconteceu com a famosa conciliação brasileira? E o que silenciou tantos políticos, parlamentares e candidatos que acreditavam firmemente na própria vitória nas eleições de 65? Por que os melhores bacharéis udenistas, orgulhosos de seu liberalismo da "eterna vigilância", acabaram aderindo à mais deslavada conspiração golpista? Como se aceitou, tão sabujamente, a interferência americana e as bênçãos da alta hierarquia católica (nacional e vaticana), ambas comprometidas com o que havia de mais reacionário e sanguinário nas três Américas, naqueles tempos de Guerra Fria e utopias socialistas?
Enfim, uma série de perguntas que já gastaram muita tinta e corroeram paixões, mas continuam postas, impenitentes, ameaçadoras ao bom-mocismo que tem grassado em certos meios intelectuais e políticos, que preferem desconversar e "esquecer o passado" (talvez para não contaminar a opção preferencial pela atraente modernidade das alianças oligárquicas?). Esta coletânea, ao retomar aquelas perguntas e boa parte da polêmica sobre o golpe, tem o mérito de sacudir a poeira sobre o assunto, o que deve interessar à nova geração, tão descrente da política quanto ignorante de nossa história mais recente. Caio Navarro de Toledo, responsável pela edição, colabora com uma indispensável revisão histórica do período e dá sua visão pessoal sobre o governo Goulart e o golpe.
Como toda coletânea que resulta de intervenções em um seminário, o livro é bastante desigual no tratamento de cada tema -do tom coloquial das palestras aos artigos acadêmicos, com indicações bibliográficas. Mas todos os autores "tomam partido", têm uma opinião clara sobre a conjuntura da época (a maioria deles viveu o período, em condições de maior ou menor envolvimento), e concordam que o golpe foi contra as reformas, a crescente participação popular, o projeto de um capitalismo nacional autônomo. Em certos momentos, apresentam divergências interessantes, a começar pela primeira questão, a da inevitabilidade do golpe. Há divergência também em relação a João Goulart, "que caiu mais por suas qualidades do que por seus defeitos", de um lado, ou foi "débil, cego e tíbio", por outro (como julga Florestan Fernandes), passando pela generosa comparação com "uma figura hamletiana". Esse tipo de polêmica justifica o sub-título de "visões críticas".
Abro um parênteses para dizer que considero como uma das principais causas da queda de Jango o fato de não ser um bom conciliador. Herdeiro maior do "populismo que dava certo", ele queria reeditar a prática getulista -de árbitro entre a elite e as massas, entre a esquerda e a direita. Falhou. Não apenas as condições sociais e econômicas e mundiais eram outras, como Jango não tinha, nem de longe, a habilidade, a autoridade e o carisma de Getúlio.
É importante lembrar a intensa radicalização das posições no Congresso, por exemplo, palco de verdadeiros conflitos que mal escondiam reais interesses econômicos atrás de batalhas ideológicas contra o suposto comunismo do governo e sua "república sindicalista". Jango teria que optar e quando optou -pela "esquerda", no comício da Central- já era muito tarde. Não havia mais tempo para organizar o contragolpe. De qualquer modo, Jango não teria optado até as últimas consequências, de tocar as reformas "na lei ou na marra". Isso já seria uma revolução, o que horrorizava tanto o herdeiro de Getúlio quanto um tiro no coração.
Gostaria de registrar que muito me agradou, nesta coletânea sobre tempos tão sombrios, o depoimento de Ênio da Silveira. É reconfortante ler sobre o formidável "chega-pra-lá" que deu, em evento social, na reacionaríssima Rachel de Queiroz que, com a falsa cordialidade dos dedos-duros, queria se enturmar. Outro momento curioso é quando o editor fala sobre a "confusão mental" de seus interrogadores, na prisão, que o acusavam, simultaneamente, de ser "agente de Moscou" e "de Pequim". Pediu-lhes, por favor, que fizessem uma opção: "ou me nomeiem agente de Moscou ou de Pequim, ambos não posso ser". E deu-lhes uma aula de geopolítica sobre o assunto. Este depoimento é também valioso para mostrar o obscurantismo cultural, presente em qualquer ditadura, e o que significava, para um comunista independente como Ênio da Silveira, estar, como ele diz, "visceralmente" comprometido com a luta, e o alto preço que pagou por isso.
Do conjunto das intervenções, o que me pareceu mais evidente e consensual diz respeito à imaturidade de nossas instituições democráticas, à impossibilidade, como diz Argelina Figueiredo, de articular o compromisso democrático com a implementação das reformas sociais. Argumento muito bem trabalhado pela autora, inclusive através da discussão sobre o remendo parlamentarista, o Plano Trienal e a reforma agrária, embora o texto carregue o peso da fatalidade, como se estivéssemos "condenados ao fracasso". Talvez esse destino nos fosse reservado devido ao que lembram outros autores: o desapego às práticas democráticas era muito arraigado, tanto na direita quanto na esquerda; havia "golpismo dos dois lados", como afirma Jacob Gorender. Até as Forças Armadas, segundo Nelson Werneck Sodré, teriam sido mais instrumentalizadas pelos golpistas civis do que propriamente dirigentes daquilo que consideravam "uma revolução".
Não descarto inteiramente tais opiniões. Desde, pelo menos, Sérgio Buarque de Holanda, sabemos que, entre nós, "a democracia sempre foi um lamentável mal-entendido". Mas, assim como a frase de mestre Sérgio sofreu interpretações falaciosas, é necessário dosar as cinzas que colocamos em nossas cabeças. Não sejamos tão marcados pela "culpa" de nossa herança ibérico-patrimonial (podemos acabar nos lamentando de não termos sido colonizados pelos holandeses) e talvez possamos discutir melhor os grandes fatores que levaram ao golpe.
Aqui avulta a notável contribuição de Moniz Bandeira, com provas históricas irrefutáveis -de arquivos diplomáticos recentemente liberados- sobre a eficaz atuação do Pentágono (CIA, Câmara de Comércio, Conselho das Américas, planos "Brother Sam" etc.) em apoio financeiro e logístico ao golpe. A educação democrática brasileira precisaria ter raízes seculares para resistir a assédio tão brutal, pois estava em jogo uma nova "estratégia de segurança continental", criminosa, sem dúvida, mas "moralmente justificada" -para seus defensores- devido à possível "exportação" da revolução cubana.
Tendo a acreditar que, do ponto de vista dos interesses econômicos, o golpe de 64 seguia um certo "Consenso de Washington" "avant la lettre". Octavio Ianni discute, em outros termos, essa questão, enfatizando o rolo compressor do capitalismo transnacional ou globalizado, responsável pelo novo desenvolvimentismo associado e dependente.
Paul Singer e Francisco de Oliveira também analisam os aspectos econômicos, o primeiro chamando a atenção para os conflitos distributivistas implícitos nas posições em confronto, e o segundo para o fato de que a burguesia brasileira acaba sendo "obrigada a competir com a internacional" -em condições precárias, é claro, mas com a gratíssima colaboração do complexo Ipes-Ibad. O ovo da serpente foi chocado naquela época, considerada "menos democrática" (em termos de expansão da cidadania) do que hoje, mas seus brilhantes rebentos aí estão, no receituário liberal (não é "neo" coisa nenhuma), em momento de democracia política como jamais tivemos. Quero dizer, com isso, que diante de interesses econômicos "globais" tão poderosos, a democracia política tradicional (Estado de Direito, eleições etc) , embora indispensável, é insuficiente para que possa surgir uma alternativa que corresponda aos anseios populares por verdadeiras reformas sociais.
Quero dizer, com isso, que ao lado da democracia representativa é necessário que se reforcem as possibilidades de democracia participativa. No início dos anos 60 havia um tipo de efervescência popular que poderia levar efetivamente a maior participação e expansão dos movimentos sindical e popular (aqui discutidos por Lucília de Almeida Neves e João Roberto Martins Filho). Foi justamente o medo dessa participação, o medo desse "povão" exigente, que teria levado grande parte da classe média a apoiar o golpe.
No artigo de João Quartim de Moraes encontramos respostas para algumas daquelas perguntas iniciais -porque fracassou a resistência militar, apesar da mobilização legalista do governador Brizola e do esforço de generais íntegros e dignos, como Zerbini e Ladário. Esse registro parece-me especialmente relevante -como um ato de justiça aos protagonistas-, mas também porque contribui para esclarecer as diferenças entre os próprios militares. Não eram todos "gorilas", é claro, e muitos foram até punidos por não aderirem ao golpe.
Reler sobre 64, hoje, pode ser angustiante para nossa geração de cinquentões (no que foi que erramos?), mas é obrigatório. Retomar essa discussão pode ser um ato de resistência, o que nos compromete, pelo exame dos equívocos do passado populista, com o presente e o futuro do país e com a construção da democracia -esta pode ser muito difícil, mas não impossível. O golpe de 64 não foi "destino", assim como também não o é a "mão invisível do mercado", nesta terra de excluídos.

Maria Victoria de Mesquita Benevides é socióloga e professora titular da Faculdade de Educação da USP.

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