São Paulo, sábado, 9 de agosto de 1997
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"Immota Labascunt"

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

A expressão completa é: "Immota Labascunt et quae perpetu• sunt agitata, manent". Em português: O que é rígido desaba e o que está em constante movimento persiste. Atribui-se a James Boswell (1740-1795) a divulgação da expressão latina, provavelmente uma espécie de lema do próprio -peralta escocês, sutil observador do seu tempo e o criador da biografia moderna com "A Vida de Samuel Johnson", seu amigo.
Nestes tempos velozes e valores voláteis, a proposição de Boswell pode parecer redundante. Convém esclarecer que o agito não se refere à forma de viver trepidante mas à capacidade de existir em movimento, disponibilidade para apreender e aprender. Desassossego. Criatividade interior.
Isto se aplica tanto a nações como a criaturas, instituições e casais, jovens e maduros, líderes e liderados. Norman Mailer, sem vocalizar o moto, é exemplo desta inquietação inercial, persistente, bulício íntimo. Depois de contar a história de Lee Oswald (o assassino de Kennedy), Mailer lançou há pouco uma biografia de Jesus (a única no gênero, segundo afirma o crítico Frank Kermode), montada a partir dos evangelhos apócrifos.
Há mais de uma década (1986), quando Mailer aceitou presidir o Congresso Mundial dos P.E.N. Clubes em Nova York, propôs, como tema central, o binômio "A Imaginação do Escritor e a Imaginação do Estado".
O evento produziu um escândalo literopolítico não propriamente pelo tema mas porque o anfitrião Mailer, encarregado de obter fundos para financiar a vinda de tantas celebridades, não titubeou em pedir apoio ao Departamento de Estado, que prontamente abriu suas burras, para o desconforto dos liberais, progressistas e visitantes do Leste.
A oração que Mailer proferiu na sessão inaugural, embora datada pelo momento de polarização entre os EUA e a URSS, ainda contém estimulantes ponderações sobre o Estado como um ser vivo, personalizado, protagonista. E necessariamente criativo, despojado, não-narcisista, porque o narcisista, obcecado consigo mesmo, é incapaz de dialogar e, portanto, mexer-se.
Em nossas bandas é preciso explicar que Estado não é governo (que os americanos chamam de Administração), compreende a sociedade, é espelho da sociedade que o engendra, estabelece seus padrões de exigência e ritmo.
O que nos remete ao núcleo do aforismo de Boswell: o movimento como sustentação, a ação como resultado de uma função orgânica, algo que o beija-flor, a abelha e o avião aplicam em seus desempenhos sem grande esforço e elucubrações. O que levanta uma dúvida: a sociedade brasileira (ibero-americana, pós-renascentista, marcada pelo utopismo dos séculos 16 e 17), é suficientemente móvel ou apenas irrequieta?
Aqui, vamos ao encontro de outra figura fascinante da cultura contemporânea, usina de percepções sobre história e realidade, o filósofo lituano-inglês Isaiah Berlin, já publicado no Brasil, porém cultivado à sombra, pouco badalado (talvez por representar o supra-sumo do pensamento liberal, adjetivo que se tornou anátema pelo uso que dele fizeram no campo econômico).
O clássico de Berlin sobre o declínio da utopia no ocidente ("Limites da Utopia", Cia. das Letras, 1991) constata o seu caráter estático, projeto altruísta mas ficcional, rígido e acabado -dissociado da natureza humana biologicamente mutante.
A utopia não é "customizada", vem pronta do fabricante. O utopismo gera curiosas distorções, uma delas é o patrulhamento, esta imobilidade que não admite a mobilidade à sua volta, fonte permanente de ameaças à "pureza" original.
O que nos leva aos microcosmos da realidade cotidiana. O primeiro fragmento, propiciado pelo encontro das esquerdas em Porto Alegre, onde brilhou o prefeito eleito da cidade do México, Cuauhtémoc Cárdenas. Filho de uma figura mitológica (o reformista Lázaro Cárdenas, 1875-1970), ele próprio já um mito graças à façanha de infligir a primeira grande derrota eleitoral a uma facção que, no nome e no espírito, encarna a própria estratificação da rebeldia: o Partido Revolucionário Institucional, no poder há sete décadas.
E, no entanto, aquela figura de índio que parece talhada em pedra mostrou-se capaz de recusar o seu enquadramento na velha geometria política (a expressão é dele) de esquerda e direita. O que não o impediu de manifestar suas simpatias por reivindicações do PT.
Em outro campo, exemplo típico de retesamento foram as primeiras propostas do governo para resolver os problemas levantados pelo motim das polícias estaduais. Aventaram-se diversos paliativos formais mas ficou intocado o problema crucial: de onde virão os recursos para os novos salários, novos equipamentos, novo sistema penitenciário e o fim deste Vietnã que consome dezenas de milhares de vidas por ano e nos coloca num cenário de barbarismo incompatível com qualquer projeto de modernização.
Foi numa das passeatas insurrecionais que um agente da ordem convertido em desordeiro, mas com o espírito folgazão carioca, escreveu numa faixa: "Adote um policial antes que um bicheiro o faça" (registrado por Zuenir Ventura no "Jornal do Brasil" de 26 de julho último).
No exato momento em que a Justiça fluminense começa a tomar as primeiras providências para punir cerca de uma centena de policiais e políticos pelo envolvimento com o esquema do jogo do bicho e quando acabam de ser institucionalizadas as videoloterias que entram pelas casas oferecendo a jovens e crianças a sedução do jogo de azar, este bem-humorado manifestante propõe a retomada do debate sobre a legalização do jogo indicando uma destinação lógica para os tributos resultantes da sua exploração: a requalificação das polícias.
Não é aqui o lugar para discutir o problema do jogo nem o cinismo implantado a partir de 1947, durante o mandato do Marechal Dutra, quando foram fechados os cassinos. Vale a pena registrar que os nossos parceiros do Mercosul têm o jogo legalizado, assim como nossas matrizes religiosas e culturais (Portugal e Espanha).
A divisa "Immota Labascunt" -o que é rígido desaba- serve para registrar que, neste caso, o puritanismo álgido e hirto resseca a imaginação do Estado e desativa sua capacidade de convocação. No plano geral, o efeito é ainda pior porque aprisiona sua inventiva, tornando-o refém da angústia da imagem.

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