São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Uma cidade só de crianças

JANIO DE FREITAS

Tanto faz que seja um instante saudosista da época em que o candidato assumia compromissos, aqueles da mão amputada na Presidência, ou que seja o ímpeto já do recandidato inaugurando novas promessas. Em qualquer caso, o acesso de ira que Fernando Henrique Cardoso teve na Bahia, como lhe acontece diante de manifestações críticas, levou-o a um tema de importância e oportunidade só comparáveis aos problemas da saúde pública.
Jamais um governo, os empresários e jornalistas depositaram no ensino, em geral, tanta responsabilidade pelos atrasos brasileiros e pelo destino nacional -agora, no que chamam de era da globalização. Sendo o próprio Fernando Henrique um dos mais insistentes nas referências discursivas ao tema, sua exaltada promessa adquire uma dimensão além das sociais, humanas, econômicas e culturais.
Até o fim do mandato, promete ele, estarão na escola todas as crianças que hoje não a frequentam.
Anotemos: daqui a 17 meses não mais haverá crianças fora da escola.
Apenas três dias antes de compromisso público, o IBGE divulgava um conjunto de dados que Fernando Henrique avaliou, em pronunciamento não menos público, como demonstrativos de que "o futuro já chegou" no Brasil modernizado. Dentre os dados, e com a colaboradora irrelevância nos meios de comunicação, está o número das crianças entre 7 e 14 anos que não recebem ensino escolar.
Dois milhões e 700 mil crianças -não há como imaginar tamanha multidão. É preciso encontrar-lhe um equivalente conhecido. No mesmo conjunto de dados oficiais o crescimento populacional apresenta um caso surpreendente: o gigantismo de Salvador levou-a a ultrapassar Belo Horizonte e situar-se, atrás só de São Paulo e Rio, como terceira cidade mais populosa do país. Dois milhões e 700 mil habitantes.
As crianças sem escola somam, exatamente, a população imensa da Grande Salvador.
Não se trata de fenômeno deste ano. Não é, também, uma descoberta só agora feita pelo IBGE. É um escândalo silencioso, valha a contradição, que, se pode ser extinto em 17 meses, seria eliminado com o dobro da facilidade nos 31 meses do governo. Aí está, no entanto, inteiro e intocado, servindo para transformar a inoperância arrogante e mentirosa em mais promessa.
Outro número oficial explica a permanência do escândalo silencioso: pelo último levantamento anual, 30.550 escolas estão fechadas. O número é do próprio Ministério da Educação. Nem adianta perguntar quantas o governo reabriu.
Leitura necessária
"Este livro é feito com paixão discreta e sincera por um homem que pode olhar o passado certo de que deu conta da sua tarefa muito além do que requeria o dever" -assim o prefácio do sempre extraordinário Antonio Candido introduz o leitor na aventura deslumbrante com que Apolonio de Carvalho impôs sua brava dignidade, coerência e doçura humana a tudo o que na vida tentou desafiar um desses seus alicerces.
Não há como entender que só agora esse herói da Guerra Civil Espanhola, herói da Resistência contra os ocupantes nazistas da França e heróico ainda no enfrentamento à ditadura e aos torturadores de 70, só agora nos dê sua biografia -"Vale a Pena Sonhar".

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