São Paulo, domingo, 10 de agosto de 1997
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Intrigante civilização luso-tropical

ESTHER HAMBURGER
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Brasil tem condições de se tornar uma potência mundial no próximo século. Em "Brazil, the Once and Future Country" (Saint Martin's Press, 301 págs., US$ 35), a ser lançado nos Estados Unidos no dia 25 de agosto, Marshall Eakin defende que mais do que um país sempre resignado a acontecer em um futuro incerto, o Brasil já é uma das grandes nações do mundo contemporâneo, e deve vir a ser melhor ainda.
Baseado em sua experiência de 18 anos de pesquisa e convivência com o Brasil, especialmente com os mineiros, o historiador da Universidade de Vanderbilt (EUA) publica agora o que define como uma introdução geral ao Brasil. Ele é autor também de "British Enterprise in Brazil - The St. John d'el Rey Mining Company and the Morro Velho Gold Mine, 1830-1960" -sobre o empreendimento britânico nas minas de São João Del Rey (MG)-,
Seu novo livro não é para especialistas. Trata-se de um condensado de história geral, cultura, política e economia, escrito por um amante de seu objeto de estudo, interessado em divulgar as razões de seu fascínio para um público leigo de língua inglesa.
Ao longo do livro, Eakin frequentemente compara o Brasil com os Estados Unidos e com a Europa Ocidental. O autor deixa claro, no entanto, que sua intenção não é a de salientar os fracassos brasileiros frente ao desenvolvimento alcançado por esses outros países. Seu interesse tampouco é o de cobrar o Brasil por não ter adotado modelos ocidentais estritos.
Ao contrário, inspirado em Gilberto Freyre e Roberto DaMatta, frequentemente citados no livro, pretende demonstrar a tese de que, descendentes de europeus, africanos e americanos nativos, os brasileiros possuem um passado único. Para Eakin, essa originalidade histórica e cultural faz o Brasil especialmente intrigante.
Ao longo dos cinco capítulos que constituem o livro, o autor descreve o que entende por essa especificidade cultural brasileira, sempre calçado no fundamento histórico: a herança colonial ibérica escravista. Situa sua problemática em um rápido capítulo histórico onde estabelece paradoxos. O Brasil aparece aqui nos seus contrastes clássicos: um país socialmente cindido, mas de composição racial misturada; uma das maiores democracias do mundo, no entanto governada por elites; uma economia industrial competitiva cercada de pobreza.
Para descrever a pobreza, afirma existir uma diferença de grau -enquanto os EUA têm cerca de 20% de sua população presa no círculo vicioso da baixa escolaridade, gravidez adolescente, famílias fragmentadas e chefiadas por mulheres e precariedade dos serviços públicos, o Brasil tem 60%.
Ao analisar a distribuição geográfica do país, Marshall Eakin sugere que o Brasil tem sido um dos países mais bem sucedidos na definição de fronteiras geográficas estáveis. Para o autor, embora a expansão para o Oeste tenha demorado séculos para acontecer, o país teria atingido um balanço especialmente sutil entre cultura e identidade nacional. Aqui a comparação com o rápido, mas violento e, para o autor, pouco integrado processo de ocupação do território norte-americano é inevitável.
Mas é na descrição do que, seguindo Gilberto Freyre, define como civilização luso-tropical, que o autor se estende mais longamente. Sabendo adotar uma aproximação polêmica, Marshall Eakin se defende logo contra as possíveis acusações de simplismo ou excesso de generalização.
Para ele interessa demonstrar um ponto: o de que a cultura brasileira é a única que foi capaz de vencer as distâncias entre a herança européia e do hemisfério Norte e as culturas não-brancas do hemisfério Sul. Vai buscar suas evidências na religião, na organização familiar, nas noções de gênero, na sexualidade, na música, TV, cinema, literatura e no futebol, é claro.
O livro é carregado de recordes. O Brasil é o maior país católico do mundo, mas é de um catolicismo estranho. Aqui não há mais o antagonismo para com as religiões afrobrasileiras. E, embora os pentecostais recém-chegados cresçam enormemente com um discurso belicoso, não deixam de compartilhar repertórios com o candomblé e a umbanda. Para Eakin, a mistura religiosa ajudou a romper barreiras de cor. Só no Brasil brancos podem adotar religiões afro.
A diversidade religiosa não abala o que o autor define como etos católico do povo brasileiro. Na tradição de parte da antropologia local, defende o caráter hierárquico da sociedade tradicional brasileira. A família é patriarcal extensa. A dominação é masculina. A identidade depende de laços familiares e conexões pessoais.
No entanto, aqui vem mais um paradoxo. Para Eakin, o bissexualismo no Brasil não só é bastante difundido, como é bem aceito e não abala a masculinidade. "A bissexualidade pode servir como meio de diluir a distinção entre o masculino e o feminino, assim como o mulato dilui a distinção entre o negro e o branco." O homossexualismo, apesar de reprimido e bastante enrustido, também é significativo.
Ainda no que se refere à sexualidade, o autor nota que "os brasileiros são simplesmente menos inibidos e tímidos no trato com o corpo humano e com o contato físico que povos de países do mundo desenvolvido". A disposição para expor a carne, seja um físico elegante e firme ou um gordo e flácido, reforça sua admiração sobre a desenvoltura que os brasileiros têm ao lidar com o que a humanidade tem de mais natural. E que contrasta com a falta de trato, a distância que o autor sente nos norte-americanos.
Sua observação final sobre as ambiguidades da política brasileira, segundo ele, famosa por sua combinação de pragmatismo e ausência de compromissos ideológicos, juntamente com suas considerações sobre o futebol, sintetizam bem o espírito desse livro otimista e simpático para com o Brasil e, de certa forma, pessimista e descrente para com os EUA.
Enquanto a fascinação pelo futebol americano reflete a violência, a intensidade e a impessoalidade da sociedade norte-americana, o futebol serve como metáfora da sociedade brasileira. É oriundo da Inglaterra, mas apropriado localmente, exibe a fineza, o ritmo e a exuberância da vida brasileira.
Como tantos outros, essa apresentação do Brasil revela bastante do desencantamento do mundo bem organizado de acordo com os cânones cristãos do Ocidente.

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