São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Mercado de batatas

JOÃO SAYAD

Leis são coisas complexas. Apenas advogados e filósofos deveriam ter autorização para falar sobre elas. Hoje, tomo a liberdade de sugerir que as melhores leis derivam da sabedoria popular. Em situações difíceis e inevitáveis, o melhor a fazer é se adaptar e aproveitar o momento da melhor forma possível. Relaxe.
A Lei Seca, por exemplo, não diminuiu o consumo de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos dos anos 20 e 30. Ao contrário, gerou grandes lucros para os comerciantes e vendedores de bebidas e especialmente para a Máfia.
As leis brasileiras sobre proibição do fumo em lugares públicos foram tão rigorosas, inicialmente, que acabaram sendo vencidas pelo bom senso: em alguns restaurantes se fuma sem restrições; em outros, apenas em áreas especiais e outros ainda proíbem totalmente o fumo.
A prática ficou melhor do que a lei: passou a valer a sensibilidade do dono do restaurante às demandas dos seus clientes.
No caso de drogas, a questão é mais complicada. Os defensores da descriminalização da droga argumentam contra a proibição, mas é difícil arriscar qualquer conclusão.
Existem hoje muitas propostas de mudança e flexibilização da CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho. Os tempos mudaram, as leis ficaram para trás e argumenta-se hoje que a CLT é um obstáculo ao crescimento do emprego.
De fato, os tempos mudaram.
O pleno emprego deixou de ser um objetivo de política econômica. Apenas a inflação é importante. Basta acompanhar as notícias sobre as taxas de juros americanas. Qualquer notícia sobre aumento de emprego ou de vendas é acompanhada imediatamente por aumento de taxas de juros.
Além disso, as empresas passaram a adotar tecnologias e estruturas organizacionais que empregam menos trabalhadores. Muitos trabalhadores são terceirizados, isto é, passam a ser empresários sem capital e com rendimento variável. Muitos não conseguem se integrar na economia.
A CLT brasileira ajuda ou atrapalha a situação difícil do trabalhador brasileiro?
A resposta é complexa, mas, como conclusão geral, poderíamos dizer que atrapalha. Se o mercado de trabalho se transformou, fazendo com que o trabalho seja comprado e vendido como batatas, a CLT, que pretendia criar um estatuto especial a essa mercadoria, pode atrapalhar tanto os compradores de batatas quanto as próprias batatas.
A mesma coisa se pode falar da Previdência Social. A Previdência atual do Brasil e de muitos outros países foi constituída como uma forma de aumentar o salário do trabalhador garantindo vantagens e fazendo com que o governo e a empresa ficassem responsáveis financeiramente pela aposentadoria do trabalhador.
Se o mercado mudou e o trabalho passou a ser menos importante, mais barato, mais fácil de substituir, as leis da Previdência também se tornaram um problema.
O que fazer?
Não adianta batalhar pela manutenção da CLT como está hoje. Nem da Previdência.
As relações estáveis de emprego e o pleno emprego são coisas de outros tempos. Insistir em todas as garantias, regras e vantagens da CLT pode acabar sendo prejudicial para o salário e o emprego, do jeito que estão definidos hoje.
Seria como insistir com a Lei Seca, que não impede o alcoolismo e ainda por cima dá lucros aos gângsteres. Abandonar a Lei Seca, entretanto, não significa defender o alcoolismo.
Da mesma forma, a reformulação da CLT ou a reforma da Previdência pode diminuir os problemas que o novo mercado de trabalho, de salários menores e emprego instável, apresenta para os trabalhadores.
As reformas da CLT e da Previdência, assim como a administrativa, retiram vantagens concretas e imediatas dos trabalhadores. E oferecem, em troca, apenas mais emprego instável e com salários menores. Talvez seja a melhor solução -a menos nociva- para os tempos em que vivemos.
Se a questão fosse tratada com realismo e tolerância com o inevitável -como adaptar o mercado de trabalho aos tempos difíceis de desemprego, instabilidade e salários menores-, a negociação poderia avançar mais rapidamente.
Trabalhadores e políticos poderiam negociar prejuízos inevitáveis por vantagens em troca de investimentos importantes na renda do trabalhador -educação, saúde, habitação e transporte público, ou programas alternativos de suporte como o de renda mínima ou o seguro-desemprego.
Entretanto, continuamos a discutir as reformas apologeticamente, como a salvação do país. Não há o que fazer, sempre discutimos assim.

E-mail: jsayad@iibm.net

Texto Anterior: Saindo do poço; Aparando arestas; A saideira; Bola dividida; Rédea segura; Na prateleira; Pela intervenção; Trocando posições; Pelo ladrão; Nos céus; Preparando a largada; Com potencial; Fugindo do imposto; Somando as partes; Carros para chocolate; Em bloco; Concentrando atividades; Pedindo ar; Promovendo a categoria; De gente grande
Próximo Texto: Dobrando-se às forças do atraso...
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.