São Paulo, terça-feira, 12 de agosto de 1997
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Uma nova Lei de Imprensa

JOSÉ FOGAÇA

No que diz respeito a uma nova Lei de Imprensa, o Congresso Nacional parece debater-se, há anos, de forma torturante e interminável, entre Kafka -um longo processo- e Dostoiévski -crime e castigo. Creio que chegou a hora de sermos mais objetivos.
A mais primacial das discussões em torno da Lei de Imprensa é aquela que se estabelece sobre sua validade ou necessidade original.
Editoriais de importantes jornais do país já manifestaram esse ponto de vista, o que demonstra ser essa uma posição adotada por significativos representantes dos empresários de comunicação em nosso país.
Dizem os que argumentam contra a existência de uma Lei de Imprensa que, relativamente aos crimes de opinião, basta aplicar a lei penal comum. Criar uma lei especial para os delitos de comunicação social seria um exagero, uma demasia, uma distorção.
Infelizmente, em nosso país, um debate dessa natureza não tem nem sequer como ser feito. Por uma única e irrecorrível razão: já existe uma Lei de Imprensa, criada pela ditadura militar e em vigor desde 1967.
Todos sabem que -dado o clima de tensão permanente entre o Congresso e a imprensa- é impossível que a lei de 67 seja pura e simplesmente revogada. Só há uma forma de, um dia, eliminá-la: colocando outra em seu lugar. Discutir qualquer coisa diferente disso é perda de tempo.
Tornam-se estéreis, quando não surrealistas, portanto, os argumentos e artigos contundentes que, aqui e ali, ora são publicados, defendendo a não-existência de uma Lei de Imprensa. Essa postura, ao contrário do efeito que pretende, acaba por fortalecer, legitimar e até eternizar a Lei de Imprensa atual, que -todos sabem- é retrógrada, autoritária e antidemocrática.
Outra discussão importante é aquela que diz respeito à natureza dos delitos de imprensa. Os crimes de lesão à honra (calúnia, difamação, injúria), embora às vezes sejam mais cruéis do que os crimes de lesão corporal e mesmo os crimes contra a vida, não são praticados por indivíduos que representem ameaça física à sociedade.
Logo, a pena de prisão, ou a de privação de liberdade, nesse caso, deixa de ter conteúdo sociocomportamental, isto é, que vise a corrigir uma conduta ou apontar um padrão ético de convivência comunitária. Torna-se, na verdade, um castigo, um ato de vingança, um gesto primitivo, predatório e anti-social, que responde mais ao instinto e às emoções individuais do que à racionalidade do Estado de Direito.
Suprimir as penas de encarceramento não tem o caráter de um privilégio. É uma tendência do moderno direito penal. Opor-se a essa tendência -como alguns parlamentares e até alguns jornalistas fazem- é opor-se à modernização da Justiça e do direito penal, é opor-se a uma tendência civilizatória básica do nosso tempo.
A pena a ser aplicada contra os crimes de imprensa é a de caráter pecuniário ou a de prestação de serviços à comunidade, em atividade digna e profissionalmente compatível.
Erram, na minha opinião, aqueles parlamentares que desejam impor multas absurdamente elevadas às empresas jornalísticas. Antevêem, oniricamente, o dia em que -com um só processo- será possível levar à falência um grande jornal ou uma poderosa cadeia de televisão. Essa idéia não é só ingênua e equivocada: ela é, sobretudo, inexequível.
As penas pecuniárias devem ter valores razoáveis, proporcionais, correspondendo a uma filosofia e a uma visão permanentes da lei, do direito à honra e à privacidade, muito mais do que ao poderio econômico-financeiro de uma empresa jornalística.
Melhor é a aplicação razoável, a longo prazo, de punições criteriosas, consistentes e eficazes do que uma única, gigantesca e definitiva punição.
A mudança dos hábitos de desrespeito à ética, à privacidade, à honra dos cidadãos não virá com uma só grande tacada, como alguns imaginam. Virá com o tempo. Com a prática dos tribunais, com a permanência e a exequibilidade da lei.
A coragem da denúncia é um dever do jornalista e um direito da cidadania, porque é por meio de sua prática que se assegura a revelação socialmente necessária da verdade.
Ao mesmo tempo, acreditamos que mecanismos como o direito de resposta e a obrigatoriedade de publicar a notícia sobre a multa recebida trarão, com o tempo, uma nova cultura e uma correta disciplina de convivência, isto é, um verdadeiro ponto de equilíbrio nas relações entre aqueles que exercem responsabilidades públicas junto ao Estado e aqueles que têm o dever social de informar.
Não estamos nos debatendo entre o absurdo de Kafka e o amargo naturalismo de Dostoiévski. Precisamos apenas de atitudes e decisões mais simples.

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