São Paulo, quarta-feira, 13 de agosto de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Playboy" aposta no erotismo da intimidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A "Playboy" brasileira comemora seu 22º aniversário com fotos de Marisa Orth, a Magda de "Sai de Baixo". As fotos têm um tom nostálgico, lembrando voluntariamente as "pin-ups" da década de 50.
Primeiro, Marisa Orth brinca com bolhas de sabão, na inocência de um banheiro com ladrilhos azuis. Nas páginas seguintes, alonga-se, fatal, sobre o capô de um carro antigo. Depois, repete Luz del Fuego, curvas entre cobras. Transforma-se então numa espécie de Cleópatra vitoriana de espartilhos, vigiada por um dobermann. Finalmente, monta um cavalo branco de carrossel, num cenário de conto de fadas.
O que quer dizer este "ensaio" fotográfico? Muita coisa, mas começo destacando a principal: os dilemas da própria revista "Playboy".
Como todos sabem, a "Playboy" americana surgiu na década de 50. Era uma espécie de prenúncio mercadológico da liberação sexual que veio depois. O feminismo militante viria a execrar essa revista, glorificação da "mulher-objeto". Mas não sei se a oposição entre as feministas e a "Playboy" era tão séria quanto parecia.
O máximo da "objetificação" da mulher significava, ao mesmo tempo, uma libertação sexual. Desmitificava-se a imagem da "mulher" como entidade virginal, materna, intocável. O desejo masculino, nu e cru, afirmava-se socialmente. Acima de tudo, deixava de se traduzir em termos grosseiramente pornográficos.
Se a pornografia é uma espécie de estupro visual, as fotos de "Playboy" tiveram o mérito de excitar o desejo masculino sem que essa excitação surgisse como violência, como vingança, como compensação face ao respeito que todos dedicam à mãe, à noiva, às irmãs etc. Antes, confundia-se freudianamente o desejo sexual com o tabu do incesto. Todo desejo, ao se explicitar, trazia consigo a marca de uma culpa incestuosa, de um estupro imaginário.
O par clássico "noiva/prostituta", mulher mistificada/mulher da vida, foi superado com as gracinhas sorridentes, ingênuas e sensuais, das "coelhinhas da Playboy". A revista se encarregou de substituir esse par vitoriano por outra coisa, também repressiva, mas em todo caso mais avançada: a burrice das mulheres ao lado do intelectualismo dos artigos e entrevistas. Daí as críticas do feminismo; mas foi um avanço, de qualquer modo.
Isso, na década de 50. Hoje a situação é muito diferente. A nudez feminina está em toda parte. Como é que a "Playboy" sobrevive, com tantos desfiles de Carnaval, com todas as novelas baseadas em Jorge Amado, com tantos fios dentais na praia?
Minha impressão é de que a "Playboy" substituiu a exposição do corpo feminino pela exposição de outra coisa, a saber, a intimidade de cada mulher. Deixou de apostar no erotismo do corpo para apostar no erotismo da intimidade. Ou seja, não interessa mais ao leitor (?) encontrar um belo corpo de mulher, de uma mulher qualquer, mas sim ver "como é" o corpo de Fulaninha.
Assim como a revista "Caras" mostra a casa de uma pessoa famosa, a "Playboy" mostra o corpo. Hortência, a Ida do vôlei, a Maitê Proença, a Magda do "Sai de Baixo": se aparecem nuas, não é porque sejam mais desejáveis do que uma dinamarquesa anônima; é porque são quem elas são.
Não é por acaso que, neste número de aniversário, ficamos sabendo como foi "a primeira vez" de mulheres como Luiza Brunet e Carla Camurati. Erotiza-se a intimidade, a confidência, a revelação (de gostos, fantasias etc.) mais do que a nudez.
Até aqui, tudo parece sugerir que "Playboy" encontrou uma fórmula inteligente para vencer os problemas que a liberação sexual lhe trouxe. Até tirou vantagens do processo. Mais do que nunca, cada edição de "Playboy" vale como uma conquista sexual. Fulana concordou em posar. Vitória! Mais uma a ser traçada pelas câmeras.
Mas as coisas não são tão simples. Os editores da revista tiveram a idéia de entrevistar pessoas comuns -flanelinhas, vigias, pedreiros- a respeito das fotos de Marisa Orth que iriam publicar. Os resultados da "pesquisa" aparecem nesta edição. "Olha essa coxa!", "Corpaço...", "Gosto assim, ó, mostrando as curvinhas". Assim se manifestam os entrevistados.
Sem querer, imagino, os editores de "Playboy" revelaram o problema atual da revista. Ou seja: ela se dirige à classe D ou à classe A? Só a classe D é capaz, creio, de babar diante de uma gostosona. Mas só a classe A interessa à publicidade.
Com isso, reportagens sobre as delícias de Mônaco e os prazeres de um carro esporte se alternam com mulheraças e coxões fenomenais. Entramos num terceiro par dialético, depois do par noiva/prostituta e do par burrinha gostosa/entrevista de alto nível. É o par cafajestismo/alto consumo, intimidade açucarada/bandalheira grossa, elitismo/baixo ventre.
Marisa Orth é uma boa escolha para este número de aniversário. Ela combina a baixaria do "Sai de Baixo" com uma sofisticação de atriz. Interpreta comicamente as poses de pin-up. Faz a cena com ironia. Não é especialmente bonita; mas seu rosto tem algo de plástico, de mutável, de cômico e provocante, que funciona como emblema de toda a ambiguidade da revista.
Entre vulgar e sofisticada, estranha e banal, Magda brinca com o machismo que despreza e que a enaltece ao mesmo tempo.

Texto Anterior: Dramaturgo adia peça 'Desembest@i'
Próximo Texto: Bienal carioca espera 1,1 milhão de pessoas
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.