São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 1997
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Curta africano traz potencial de longa

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A mostra "Foco: Cinema Negro" inclui seleções de filmes vindos da África subsaariana e da "diáspora" (Estados Unidos, Europa e Brasil).
Dentre eles, são naturalmente os curta-metragens da África negra que apresentam um significado especial, já que nesse continente de cinematografia recente e parcos recursos financeiros o acesso ao longa é privilégio de poucos.
Praticamente a totalidade dos cineastas africanos são, antes de tudo, curta-metragistas.
O senegalês Mansour Sora Wade, por exemplo, tornou-se conhecido no mundo apenas por meio dos curtas que dirigiu.
A retrospectiva de quatro de seus filmes, incluída na mostra, ilustra bem o caráter concentrado e o potencial de longa que caracterizam os curtas africanos em geral.
O estilo documental das filmagens em locação, com as populações locais, serve apenas de cobertura para narrativas ficcionais, quase todas baseadas em contos da tradição oral.
"Pequeno Pássaro" ("Picc Mi"), o trabalho mais premiado de Mansour, utiliza como base do enredo a fábula do crocodilo que se faz de amigo de um passarinho abandonado pela mãe, querendo, na verdade, devorá-lo.
A fábula, entoada em "off" por crianças, metaforiza a situação de um menino abandonado aos cuidados de um marabu -espécie de eremita ou asceta muçulmano-, que o obriga a esmolar.
Desde o início, evidencia-se o poder sintético das imagens, quando o menino lança um rápido olhar a um ninho de passarinho na árvore sob a qual o marabu devora seu almoço, enquanto faz meninos esfomeados recitarem o Corão.
O filme concentra os elementos básicos do cinema de Mansour e, provavelmente, da maioria dos curtas africanos da mostra: a base da tradição oral, o narrador "off" e a criança como centro do enredo.
"Taal Peex", outro belo destaque da retrospectiva de Mansour, focaliza a tradição de uma aldeia senegalesa de ensinar cavalos a dançar. De novo, o que interessa aqui é a relação do menino com o cavalo e a sabedoria proverbial dos velhos que o ensinam a lidar com o animal.
Narrativa oral
Dentre os assim chamados clássicos, mais um curioso caso de narrativa oral é "Borom Saret", dirigido pelo Ousmane Sembène, famoso escritor e pioneiro do cinema na África.
Rodado em 1962 e tido como o primeiro filme integralmente africano, o curta conta a história de um charreteiro que, graças à sua generosidade, acaba perdendo tudo, inclusive a própria charrete. Sua triste saga é exemplarmente narrada em "off", desta vez por um verdadeiro griot (cantador) wolof (etnia majoritária do Senegal), que recebe ainda a tradução de um comentador francês.
O procedimento era típico nesses primeiros filmes africanos, que se destinavam a ser compreendidos pelas populações locais, sem abandonar a pretensão internacional.
Muito antes de "Borom Saret", "África sobre o Sena" ("Afrique sur Seine", de 1957, outro clássico incluído na mostra), do também senegalês Paulin Vieyra, é narrado num francês impecável com a evidente intenção de mostrar aos franceses quem são os africanos.
Essa preocupação já foi inteiramente abandonada por diretores mais recentes, como Idrissa Ouédraogo, de Burkina Fasso, talvez o maior cineasta contemporâneo da África.
Autor de vários longa-metragens famosos, Ouédraogo também começou rodando curta-metragens, dentre eles o excelente "Issa, o Tecelão" ("Issa, le Tisserand", de 1985, escolhido para a mostra).
O filme dispensa todo comentário "off" e mesmo os diálogos. Apenas com imagens de alto poder narrativo, mostra como o artesanato tradicional da África vai progressivamente dando lugar aos produtos industrializados.
Seleções da 'diáspora'
Já as seleções da "diáspora" tornam evidentes as posturas radicalmente diversas que caracterizam os negros nas diferentes partes do mundo.
A seleção americana compõe um libelo inflamado contra o racismo. A britânica é mais bem-humorada, contendo largas incursões no território gay.
Já a brasileira -da qual vale destacar o pouco exibido "Lima Barreto: Trajetória", de Julio Bressane- desenvolve-se sobre a sofrida integração do negro na nossa sociedade.

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