São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997 |
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A alternativa alemã
RICARDO MUSSE
Kant, na "Resposta à Pergunta: Que É Esclarecimento?", propõe uma ampliação da liberdade pelo uso público da razão, isto é, pelo uso que o "sábio faz dela diante do grande público no mundo letrado". Desencadeado esse processo, o "Esclarecimento", os homens tendem a se desvencilhar da situação de menoridade, da necessidade de tutores que se tornou para eles quase uma natureza. Contraposto a este possível "espaço público", no universo das profissões, caracterizado pelo "uso privado da razão", "é sem dúvida permitido raciocinar, mas deve-se obedecer". Schiller, por sua vez, propôs, numa série de cartas, o desenvolvimento pleno das capacidades intelectuais e sensíveis pelo cultivo de um "impulso lúdico", motor da "Educação Estética do Homem". Hegel situa a "Aufklãrung" e a Revolução Francesa, ao lado da Reforma, como um dos acontecimentos decisivos dos tempos modernos. Adotando um ponto de vista retrospectivo, procura explicar o fato de os franceses, ao contrário dos alemães, terem passado à ação pela diferença entre as filosofias: a francesa, abstrata, permaneceu presa à reivindicação de direitos; a alemã, concreta por conceber o princípio do espírito, foi capaz de reconciliar, graças à Reforma, religião e direitos. Marx expôs o núcleo dessas contradições assinalando pela primeira vez, sem nomear, a dialética da "Aufklãrung", no "Manifesto do Partido Comunista". Aí, define o capitalismo, ao mesmo tempo, como estático -na medida em que a sua reprodução cotidiana perpetua relações sociais de dominação- e dinâmico -pela incessante revolução das forças e capacidades de produção e consumo. Adorno e Horkheimer, na "Dialética do Esclarecimento", retomam o vínculo que Marx estabeleceu entre esse conceito e a sociedade burguesa, procurando entender por que "o progresso converte-se em regressão". A constatação de que o entrelaçamento entre racionalidade e realidade social é inseparável do entrelaçamento da natureza e da dominação da natureza levou-os à conclusão de que, no "mundo administrado", "o mito já é Esclarecimento e o Esclarecimento acaba por reverter à mitologia". A extensão da racionalidade ocidental até Homero, a aproximação da "Aufklãrung" ao conceito weberiano de "desencantamento do mundo" geraram uma série de mal-entendidos, amplificados pela interpretação, quase autorizada, de Habermas. Nos anos 90, confundir Adorno com o neo-estruturalismo francês, com o pós-modernismo, deixou de ser privilégio da "inépcia" norte-americana para a filosofia e tornou-se moda mundial. Um antídoto para isso pode ser encontrado na própria obra de Adorno, sobretudo em um ensaio, "Progresso" (1966), cuja semelhança temática com a "Dialética do Esclarecimento" impõe uma leitura conjugada, à maneira das constelações que Adorno, ciente do núcleo temporal, julgava mais conveniente à aparição da verdade. Reencontramos lá as mesmas aporias do livro de 1947. Resgata-se, entretanto, mais incisivamente do que no passado, mesmo que de forma negativa, a possibilidade da utopia: "O impulso antimitológico do progresso não pode ser pensado sem o ato prático, que rompe a ilusão da autarquia do espírito. É por isso que o progresso não é algo a ser constatado na contemplação desinteressada. Aqueles que com palavras novas sempre querem o mesmo -que não haja progresso- encontram nisso seu pretexto mais perigoso. Ele se nutre do sofisma de que, como até hoje não teria havido progresso, não haveria por que havê-lo". Texto Anterior: Até a última gota Próximo Texto: O exílio americano Índice |
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