São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 1997 |
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"Passageiro" é Antonioni que Wenders queria ser
JOSÉ GERALDO COUTO
Na superfície, é a história de um repórter de TV, David Locke (Jack Nicholson), que se aproveita do acaso para passar por morto e assumir a identidade de outro homem, um tal Robertson, que só depois ele descobre ser um traficante de armas para guerrilheiros africanos. Mas "O Passageiro" é também muitas outras coisas, a escolher. É, por exemplo, um ensaio sobre a identidade como prisão suprema do indivíduo. Antes da morte de Robertson, num hotel perdido no meio da África, Locke lhe diz: não adianta viajar o mundo se não escapamos de nós mesmos. É também uma reflexão sobre a fronteira entre aquele que observa (o repórter) e aquilo que é observado (a vida), entre sujeito e objeto, registro e ação. Ao ser entrevistado, um curandeiro tribal diz: "Suas perguntas revelam mais sobre você do que sobre mim". Em seguida, vira a câmera para Locke, que se desconcerta. É, igualmente, um "road movie" tremendamente romântico, sobre o amor improvável entre um homem em fuga e uma arquiteta francesa (Maria Schneider) obcecada por Antoni Gaudí, o gênio catalão da arquitetura. É ainda um estudo das cores e suas vibrações: vermelho sobre branco, verde sobre branco, branco sobre branco. (Num "pueblo" andaluz, um homem diz a Locke: "O mecânico fica naquela casa branca". Locke olha: todas as casas são brancas.) É uma dissertação visual sobre a organização do espaço e suas muitas maneiras de aprisionar o homem, dos labirintos góticos de Gaudí ao deserto sem fim. Ponto de vista É, sobretudo, um filme sobre o próprio cinema em seu cerne: a manipulação do tempo e do ponto de vista. No primeiro caso, há um par de cenas extraordinárias, no hotel africano, em que a passagem de tempo se dá no interior do próprio plano. Locke está falsificando seu passaporte, depois da morte de Robertson; a câmera se afasta para o balcão do quarto e, sem cortes, mostra Robertson conversando com o próprio Locke, dias antes. No caso do ponto de vista, há o célebre e insuperável plano-sequência final, em que a câmera atravessa a janela do quarto onde está Locke, dá a volta na praça em frente e torna a focalizar o quarto, do ângulo oposto, sendo que toda a ação se passa "às costas" da câmera (e do espectador). Se o cinema moderno tivesse que ser resumido em dois únicos planos, esses poderiam ser o plano-sequência inicial de "A Marca da Maldade", de Orson Welles, em que a câmera, de modo onívoro, absorve e mostra tudo (os personagens, a preparação e a consecução do drama), e esse plano-sequência final de "O Passageiro", em que, elíptica, ela não mostra nada, mas sugere tudo. É o momento supremo de um filme que joga o tempo todo com o espaço fora do quadro, com a tensão entre o desejo de expansão -Locke "batendo as asas" num teleférico sobre Barcelona; Schneider em pé num conversível, numa alameda de árvores- e a circunscrição do enquadramento. Com um absoluto rigor estético e moral, Antonioni retira do espectador todas as muletas que o cinema convencional lhe dá, e lança-o no vazio. A vida, ele parece dizer, está logo ali, fora do quadro. Faça com ela o que quiser. Filme: O Passageiro - Profissão: Repórter Produção: Itália/Inglaterra, 1975, 118 min. Direção: Michelangelo Antonioni Elenco: Jack Nicholson, Maria Schneider Lançamento: Alpha (tel. 011/230-0200) Texto Anterior: CLIPE Próximo Texto: 'Caindo'joga com culpa e punição Índice |
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