São Paulo, sábado, 30 de agosto de 1997
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Saúde não é mercadoria

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

A proposta do relator da Comissão Especial dos Planos de Saúde, que é igual à do governo, mantém e legaliza a situação perversa em que está submersa a questão.
Limita o número de dias de internação e de UTI, como se o doente fosse ao hospital para passar férias, e permite todas as exclusões que os planos de saúde desejarem fazer para conter custos, anulando inclusive o benefício de exigir a existência de um plano padrão (artigo 9º do relator e 24 da proposta do governo).
O cidadão paga dez anos religiosamente suas mensalidades e, quando um filho adoece, percebe que tudo o que é importante, caro ou complexo está fora do seu plano. Sobram-lhe desespero, venda de bens, reclamação ao Idec ou ao Procon.
Somando-se a isso a permissão de aumento de mensalidades com a mudança de idade, que atualmente expulsa os idosos dos planos de saúde, teremos aí um produto enganoso sendo vendido a milhões de usuários brasileiros, agora com sérios riscos de ser institucionalizado pelo Congresso. Será o estelionato legalizado para o proletariado e a classe média, comercializando de forma desonesta o bem maior do ser humano, sua saúde e a dos seus filhos.
A Golden Cross, hoje, a Capemi, ontem, são caminhos a serem trilhados por muitos amanhã -se não houver uma regulamentação rigorosa-, com a possibilidade ainda mais grave de deixar segurados que pagaram durante décadas totalmente desassistidos.
O pior, entretanto, é a outra face: o governo, com o caos generalizado do sistema público, está empurrando a classe média e boa parte do proletariado para esse estelionato e, ao mesmo tempo, oferecendo os hospitais públicos, na forma de convênios, aos seguros e planos de saúde (artigo 16 do relator e artigo 33 da proposta do governo).
Mais uma vez institucionaliza-se o ilegal, ou seja, o uso indevido que os planos já estão fazendo dos hospitais públicos.
O resumo é fantástico, quase inacreditável: o governo cede (empurra) a clientela, legaliza a venda do produto enganoso a incautos, oferece os próprios hospitais para a prática do estelionato e se despe da responsabilidade de atender a população.
Com isso, legaliza-se a injusta "dupla porta" nos hospitais públicos, e expulsam-se ainda mais os excluídos do sistema de saúde, pois, quando se destina uma parte dos leitos para atendimento pago, retiram-se os mesmos dos atendimentos gratuitos.
No projeto que apresento, que tem origem no Conselho Nacional de Saúde e participação de Idec, Procon, CFM e AMB, os planos e seguros de saúde deverão oferecer assistência a todas as doenças (excetuam-se procedimentos não-éticos, experimentais e estéticos), o paciente fica o tempo que for necessário no hospital, e não se permite o aumento da mensalidade pela idade ou por qualquer outra razão.
Ele poderá ficar um pouco mais caro, mas não haverá engano ou estelionato, e caberá ao sistema público de saúde a responsabilidade de oferecer a todos, particularmente àqueles que não podem comprar planos honestos, uma saúde ética, humana e eficiente.
Isso será perfeitamente possível se for descentralizado o gerenciamento, se forem postos em funcionamento os serviços públicos hoje ociosos e se forem remunerados com dignidade os trabalhadores de saúde.
Haverá recursos de sobra para isso, se terminarem as sangrias criminosas, se o sistema público de saúde for gerenciado com competência e ressarcido do parasitismo dos planos de saúde e se a CPMF for usada para o fim a que se destina.
A preocupação do governo com a falência das seguradoras e sua proposta liberal de regulamentação mostra que seu interesse maior é a saúde das empresas e não a saúde do povo brasileiro.
A saúde dos planos vai muito bem, aumentaram 25,6% seus lucros no último ano, além de terem sido, nos últimos dez anos, o negócio mais rendoso do Brasil. É preciso impor a eles menos lucros e mais seriedade. Esse é o papel do Congresso e do governo, reiteradamente descumprido. Este último, agora, ameaça com uma extemporânea e ridícula medida provisória.
Saúde é uma questão complexa, mas profundamente relevante; não é mercadoria, como querem colocar, mas um direito legítimo do cidadão, que precisa ser garantido pelo governo.

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