São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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As estratégias de Ian McEwan

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Nunca tinha ouvido falar do escritor inglês Ian McEwan, nascido em 1948, autor de vários romances e livros de contos. Foi o crítico Arthur Nestrovski quem primeiro me chamou a atenção para seu nome, recomendando-me um conto publicado na revista "New Yorker", de 19 de maio deste ano.
O conto é magistral. Chama-se "Us or Me" (Nós ou Eu) e narra uma catástrofe ocorrida durante um piquenique na zona rural inglesa. Algo de muito trágico acontece com uma criança dentro da cesta de um balão. O que torna o conto impressionante, impossível de não ler, é a arte do narrador. Desde o começo ele nos avisa de que algo horrível aconteceu, mas espicha a história, distrai-se, entremeia tudo com digressões fascinantes mas inúteis a respeito do casamento e do amor, até que, por fim, concede em entregar por inteiro o horror da cena.
O domínio da narrativa é a principal qualidade de Ian McEwan. Depois desse conto, fiquei sabendo que ele já tinha sido publicado no Brasil: três romances pela Rocco, e acabava de sair um quarto: "Ao Deus-Dará".
O título em português não é uma tradução muito feliz de "The Comfort of Strangers", romance que reproduz bastante a sensação do leitor com o conto a que me referi acima.
Um casal de turistas ingleses, passando por uma crise conjugal rotineira, está em férias em Veneza. Os dois se perdem à noite nas vielas da cidade e encontram um simpático veneziano, Robert, casado com uma canadense, Caroline. Logo o leitor vai percebendo que algo de horrível acontecerá.
Mas, assim como no conto, o autor deixa tudo em suspenso, insiste em sugerir que nada de anormal está ocorrendo. Ian McEwan sabe como ninguém jogar ao máximo com a expectativa de um final sinistro, de uma vitória da morbidez.
Uma prova incontestável da maestria narrativa do autor está no fato de que ele dificulta a tarefa do resenhista: é praticamente impossível dar idéia do que é este romance sem contar a sua história, e, assim, decepcionar o leitor. De certo modo, a exposição do enredo e a lógica da narração estão de tal modo interligadas que qualquer adiantamento jornalístico, qualquer resumo, qualquer "idéia" que se queira dar do que acontece equivale a quebrar o encanto criado, com maquiavelismo e arte, pelo autor.
Fiquemos então com os trechos aparentemente "soltos", alheios à ordem do romance, que Ian McEwan nos concede de quando em quando. São suficientes para nos mostrar sua inteligência, seu poder como escritor. Mary e Colin estão casados há algum tempo, e as coisas não estão indo muito bem entre eles durante sua vilegiatura em Veneza.
"Aquilo já não era uma grande paixão. Seus prazeres consistiam numa amizade serena, na familiaridade dos rituais e procedimentos, no ajuste seguro e preciso dos corpos e dos membros (...). Eram generosos e lentos, sem grandes exigências e sem muito barulho. (...) Suas discussões aconteciam em silêncio, e reconciliações como essa eram seus momentos de maior intensidade, pelos quais eles sentiam profunda gratidão".
Este belo retrato da rotina amorosa é interrompido por uma ameaça vaga, a presença de Robert e Caroline. Algo de mais profundo e mais intenso se revela ao casal de turistas; os dois se redescobrem apaixonadíssimos. Mas não posso contar mais -só dizer o quanto essa redescoberta se tinge de agouro e de absurdo, de violência e de arbítrio.
"Ao Deus-Dará", entretanto, não é o melhor romance de Ian McEwan. Foi publicado originalmente em 1981; experimente começar por uma obra mais recente, como "Cães Negros", de 1992, ou mais autobiográfica (aparentemente) como "O Jardim de Cimento", de 1978.
Em "Cães Negros" temos a mesma estrutura: algo de horrível aconteceu com June Tremaine, em 1946; algo que tinha a ver com cães negros. Desde o começo do livro sabemos disso, mas só depois de umas cento e tantas páginas descobriremos o que foi. Tudo se organiza em torno das dúvidas do narrador, dos depoimentos que ele colhe, dos desacertos conjugais e ideológicos entre June e seu marido. Pouco importa: o senso da ameaça, a premonição do mal, a vertigem ética diante desta premonição envolvem narrador e leitor de modo quase insuportável.
Em "O Jardim de Cimento", novamente o resenhista está impedido de contar qualquer coisa sob pena de estragar a leitura. O narrador é um adolescente que vê a morte do pai e, pouco depois, a morte da mãe. Com sua irmã mais velha, e cuidando de outros dois irmãos menores, desenvolve uma estratégia de ocultamento e de mentira, na qual se misturam incesto, ciúme, egoísmo e alienação. Leia-se apenas o momento em que o narrador conversa pela última vez com a mãe doente.
"Ela se reacomodou nos travesseiros e cerrou os olhos. Eu me levantei. 'Está bem', disse eu. 'Quando você vai para o hospital?'. 'Talvez daqui a uma semana ou duas' -falou, sem descerrar os olhos. 'Quanto mais cedo, melhor, eu acho'. 'É'. O local diferente de onde saiu minha voz a fez abrir os olhos. Eu estava parado na porta, pronto para sair. (...) Três dias depois, estava morta. (...) Não subi imediatamente. Tirei o casaco e os sapatos e bebi um copo d'água fria da torneira da cozinha. Procurei alguma coisa para comer na geladeira, achei um pouco de queijo e o comi com uma maçã".
É assim, neste misto de desconforto e precisão, num silencioso questionamento moral e num domínio extremo do agouro e da suposta culpa que se desenvolvem as histórias de McEwan.
Ele sempre está sabendo muito mais do que nós sabemos. Mesmo que, em cada romance, nos revele pouco a pouco o segredo que guardava (e, nesse sentido, o enredo de "O Jardim de Cimento" é uma metáfora de sua própria técnica narrativa), mesmo que, no final de cada livro, tudo sombriamente se esclareça, há alguma coisa, um horror fundamental que sua arte apenas sugere; uma percepção da morte, ou da verdade, que pulsa a cada página, fazendo do leitor um misto de cúmplice de juiz e de iniciado. Ler Ian McEwan é, com efeito, uma iniciação. Não digo mais -leia você também.

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