São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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Hidrometeoros e superstição

ROGÉRIO CÉZAR DE CERQUEIRA LEITE
DO CONSELHO EDITORIAL

Cientistas sempre se incomodaram com a, aparentemente inexplicável, enorme quantidade de água que existe sobre a superfície do planeta Terra. E cientistas não são muito diferentes dos sacerdotes. Se a explicação não está na Terra, então está nos céus. Assim, ficaram muito entusiasmados quando água foi identificada nos cometas Halley, Halle-Hopp e, mais recentemente, Hyakutake.
Esses cometas são característicos da nuvem de Oort, que fornece os cometas que chegam às vizinhanças da Terra com frequência. Então seria possível que em idades anteriores alguns, ou muitos, cometas tivessem trazido toda essa água para a Terra. Místicos têm seus deuses e santos, cientistas têm seus cometas milagreiros.
Mas, infelizmente para pesquisadores e beatos, no mês passado, numa reunião realizada em Blois, França, um golpe de misericórdia foi dado nessa teoria, ou mito. Roland Meier, Tobias Owen e colaboradores apresentaram estudos da composição isotópica da água do Hale-Bopp -que coincidem com dados apresentados simultaneamente do Halley, por Daniel Gautier, e confirmam as observações anunciadas no ano passado sobre a composição isotópica da água do Hyakutake-, na qual o deutério se apresenta com o dobro da composição que tem a água existente na Terra. Ou seja, toda a água proveniente do espaço, cujas características nucleares foram estudadas até o presente, é incompatível com a existente na Terra.
Entretanto, mitos e teorias científicas são resistentes. Uma linha auxiliar da teoria sobre a origem da água terrestre até recentemente ridicularizada acaba de ser restaurada, graças à qualidade dos dados obtidos pelo satélite Polar, que detectou pequenos objetos próximos à Terra. Esse fato revitalizou a teoria do físico Louis Frank, que propusera, há 15 anos, a existência de micrometeoritos que, graças a suas pequenas dimensões, não seriam detectáveis pelos instrumentos normais, mas que compensariam pelo grande número a exigência do enorme volume de água em questão. Como esses minicometas não poderiam ter a mesma origem dos cometas bem conhecidos, pois precisariam ter uma composição isotópica próxima àquela da água da Terra, foi concebida a existência de um planeta desconhecido, nunca antes detectado, que visitaria periodicamente as vizinhanças da Terra, para prover o espaço com toda essa água. Lembre o leitor que a Terra é um pequeno ponto no espaço. Se esse misterioso planeta jorrou tanta água na Terra, por que será que os seus vizinhos, Marte, Vênus, Mercúrio e até Júpiter, são tão sequinhos? E quanta água não deveria ter para preencher nossos oceanos sem cair na Terra. Sem pelo menos uma colisão parcial. Uma vez que teria de molhar uma parte considerável do espaço planetário. Talvez seja por causa dessas incongruências internas que essa teoria, apesar de alguns indícios que merecem investigação, continua a ser rejeitada pela maioria dos cientistas sérios.
Todavia, recente incidente na região de Campinas parece ter trazido novo alento aos crentes. Duas pedras de gelo caíram nessa região, em sequência, a segunda cinco dias e algumas horas depois da primeira. Relatos populares falam em um peso entre 100 e 200 quilos para um deles, mas o registro científico é de poucos quilos, pois as amostras teriam derretido.
Se confirmado, esse seria o primeiro relato cientificamente aceitável de gelo extraterrestre. As citações de Arthur Clarke -notável autor de ficção científica, mas que nunca foi cientista- de que teriam caído um bloco de gelo do tamanho de um elefante, na Índia do século 18, e outro de dimensões comparáveis, há 150 anos, na Escócia, países ricos em lendas e aparições fantásticas, caem no mesmo capítulo do monstro do lago Ness e da mula-sem-cabeça.
Também pertence a esse mesmo gênero a afirmativa de que minicometas de 40 toneladas poderiam ter núcleos de gelo muito densos. Mesmo a baixas temperaturas, seria impossível reduzir a densidade do gelo sem pressões incomensuráveis. Mas parece que confundem massa com peso.
Em um corpo celeste de 40 toneladas de massa não há gravidade apreciável. Não há razão para que o núcleo seja mais denso que qualquer outro ponto do minicometa de gelo, pelo menos dentro dos limites de nossa física terrestre. Talvez com um pouco de reza. Aliás, para explicar algumas propriedades óticas, Frank menciona em sua teoria bolas de neve de baixa densidade. Também é oportuno lembrar que a idéia de que os minicometas de gelo se originam nesse misterioso planeta não é parte integrante da teoria de Frank.
Recentemente -revista "Science", edição de 25 de julho de 1997, pág. 459-, um grupo de cientistas calculou a massa de água que precisaria existir no cinturão de Kuiper para que a Terra pudesse preencher seus oceanos com água proveniente de minicometas nas condições propostas por Frank.
A origem dos cometas é tomada não na distante zona de Oort, mas na mais próxima possível, e o modelo geométrico de difusão dos minicometas é o mais favorável que a boa vontade com a teoria permite. A massa calculada para o cinturão de Kuiper seria incompatível com aquela inferida por outros métodos. Se os minicometas viessem do espaço interestelar, então sua massa global teria de ultrapassar enormemente a "massa perdida do Universo" e aí sim ficariam os astrônomos com seus cabelos em pé, até aqueles que os têm descendo até as nádegas.
A primeira dificuldade para aceitar os gelos campineiros como relacionados ao espaço decorre da espectroscopia de massa de alta resolução já realizada, que identifica o gelo do hidrometeorito com a água da chuva na região. O que se esperaria para confirmar a teoria de Frank é que o gelo em questão tivesse uma composição isotópica semelhante àquela da água da Terra, mas não idêntica à da região em que os gelos foram achados. Cientistas não acreditam em coincidências. É bom lembrar que amostras de regiões diferentes da Terra têm diferenças identificáveis em seus espectros de massa.
A dificuldade maior, entretanto, decorre do fato que foram dois blocos de gelo idênticos encontrados. Se foram dois micrometeoritos de Frank, seriam as duas primeiras observações, portanto raríssimas. Como explicar que tenham ocorrido exatamente no mesmo local (do ponto de vista astronômico) e quase simultaneamente (tendo em vista que nunca foram observadas anteriormente)? A probabilidade seria infinitésima, inaceitável, portanto, como evidência científica.
Se os dois blocos são fragmentos de um mesmo meteorito, então por onde andou o segundo fragmento por cinco dias antes de cair? E se andou por algum lugar, como veio a cair no mesmo lugar do primeiro se a própria Terra deu cinco voltas sobre seu próprio eixo no período? E mesmo que estivesse este segundo meteorito gravitando sobre a Terra, seria altamente improvável que conseguisse depois de cinco dias atravessar a atmosfera e cair, do ponto de vista astronômico, no mesmo sítio.
Em ciência, quando alguma coisa impossível acontece mudamos a teoria, quando alguma coisa altamente improvável ocorre é porque erramos. Embora bolas de granizo de dimensões comparáveis àquelas dos blocos de gelo em questão quando foram medidos pelos cientistas da Unicamp sejam relativamente frequentes (a maior registrada foi em 1928, em Nebraska, EUA, com 40 centímetros de diâmetro), esse fenômeno não ocorre com as características relatadas: dois blocos solitários de dimensões elevadas e na região de Campinas. Essa hipótese teria de ser considerada com muito ceticismo.
Historicamente, gelo que cai dos céus tem sido atribuído, prosaicamente, a formações que ocorrem em aviões ao passar por nuvens com grande densidade de vapor d'água, que por ausência de aerossóis não encontram centros de nucleação. As superfícies externas do avião estão a temperaturas muito baixas. O vapor supersaturado e a baixas temperaturas encontra condições para congelar rapidamente, formando camadas de gelo. No passado, o peso desse gelo chegava a derrubar aviões. Hoje, os pilotos nem sequer notam a presença do gelo, mas ele ainda acontece. Essa hipótese se ajusta perfeitamente à primeira dificuldade, ou seja a da composição isotópica dos blocos de gelo encontrados, e à relativa pureza química do gelo, além de assimilar um pouco melhor a questão dos dois acontecimentos em sequência, pois é um fenômeno frequente e os locais onde foram encontrados os blocos estão sob rotas de grandes aviões de carga e de passageiros.
Mas é claro que essa interpretação tem uma grande desvantagem. Não precisa de um misterioso planeta, que nunca foi observado, guiado por mãos divinas, com um estoque inesgotável de água, pois para encher nossos oceanos levaria exatamente 5 bilhões de anos, a idade da Terra, com a frequência dos micrometeoritos contabilizados por Louis Frank. Como seria muito pouco provável que fizesse essa ejaculação apenas sobre a Terra -a não ser que houvesse uma atração de outra natureza além da gravitacional-, o milagroso planeta deve estar molhando uma parte considerável do espaço interestelar, pelo menos nos últimos 5 bilhões de anos. Quem tem uma teoria dessas, não precisa de anjos ou de discos voadores.

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