São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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Relato de uma cobaia

POR CLÓVIS ROSSI

CLÓVIS ROSSI
DO CONSELHO EDITORIAL

Quando as meninas da Revista da Folha me propuseram servir de cobaia para uma reportagem sobre check-ups, minha assumida hipocondria soou todos os sinais de alerta.
Pensei logo: devo estar com uma aparência tão cadavérica que a empresa está utilizando uma sutileza apenas para verificar quanto tempo vai demorar para que meu próximo médico seja um legista.
Achei que as meninas, no fundo, estavam escondendo uma frase habitual no dicionário do notável fotógrafo Jorge Araújo: "Já vi cadáveres mais corados do que você".
Mas, enfim, o que tinha a perder? Na pior das hipóteses, o vexame de, por exemplo, ser reprovado no exame de fezes, que, ademais, seria tornado público.
No dia marcado, vesti a roupa esportiva recomendada pelo manual do check-up (até para isso tem manual, meu Deus) e desembarquei no Hospital Alemão Oswaldo Cruz em plena madrugada, 7h.
Nesse horário, o cérebro não pega nem no tranco, o que pelo menos funcionou como anestesia para o tormento de passar de médico em médico, de aparelho em aparelho, certo de que um deles não se conformaria com menos do que emitir no ato um atestado de óbito.
Só anestesiado não reagi nem quando o médico que fazia o exame retal, com o dedo em plena, digamos, auscultação, murmurou um "muito bom, muito bom". Até hoje, estou tentando decifrar o que ele queria dizer exatamente com aquela frase, naquela hora.
Só acordei mesmo quando ao grupo de "checados" se juntou Andrea Calabi, ex-alto funcionário do Ministério do Planejamento. Aí, voltei a me sentir em casa: o ambiente asséptico de hospital virou simulacro de botequim, porque podíamos falar mal de todos os amigos e conhecidos que continuam no governo.
As meninas da Revista me asseguram que passei no exame. Mas não vão vencer minha hipocondria nem a pau. Sei que vou morrer logo, embora gozando da mais perfeita saúde que médicos e aparelhos conseguem medir.

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