São Paulo, segunda-feira, 1 de setembro de 1997
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Deus já me perdoou, diz mãe que buscou aborto para filha

JOSIAS DE SOUZA
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Josefina Júlia dos Santos, 55, é diarista aposentada. Tem cinco filhos. Define-se como católica. Mora em Taboão da Serra, zona pobre, situada nos arredores da capital paulista. Há seis anos, uma de suas filhas, deficiente mental, foi estuprada. Ficou grávida. Josefina decidiu que a filha faria um aborto. Foi atendida no hospital do Jabaquara. Hoje, não consegue entender a polêmica em torno da lei que obriga hospitais públicos a realizar abortos quando a mãe corre risco de vida ou quando a gravidez decorre de estupro. "Será que alguém já viveu isso na pele? Eu vivi. E sei como é," diz ela. A Folha conversou com Josefina na última sexta-feira. Ela fez dois pedidos: "Não ponham a minha cara de frente no jornal, nem o nome inteiro de minha filha". S.M.B., a filha de Josefina, aqui tratada apenas pelas iniciais, tem hoje 32 anos. Nas palavras da mãe, "ela é uma criança que cresceu demais. Tem físico de mulher, mas continua sendo uma criança." Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
*
Folha - O que aconteceu?
Josefina Júlia dos Santos - Foi em agosto de 91. Eu ainda trabalhava de diarista. Minha filha, S.M.B., deficiente mental, foi violentada. O estuprador puxou o cabelo dela, tapou a boca. O infeliz fez o que não devia, violentou minha filha.
Folha - O que a senhora fez?
Josefina - Levei ela para a delegacia da mulher. Registrei queixa, fiz o boletim de ocorrência, o exame de corpo de delito. Passados uns 45 dias, comecei a notar que ela estava grávida.
Folha - Quais foram os sinais?
Josefina - O atraso na menstruação, o seio dela começou a crescer muito. Voltei à delegacia. A delegada mandou fazer um exame de urina e confirmou que estava grávida.
Folha - Sua filha é doente?
Josefina - Tem deficiência mental.
Folha - A senhora é responsável por ela?
Josefina - Sou separada do meu marido. Eu sou responsável por ela.
Folha - A senhora disse à delegada que queria fazer o aborto?
Josefina - Falei. Eu disse que já criava ela e os irmãos e que não tinha condições de criar mais um. Ainda mais uma criança feita com violência, com estupidez.
Folha - Sua filha teria condições de cuidar de uma criança?
Josefina - Não. Ela não cuida nem dela.
Folha - A própria delegada a encaminhou para o hospital?
Josefina - Sim. Ela me encaminhou para o Jabaquara. Quando o pessoal via minha filha, chorava. Ela é uma criança. Foi difícil demais, muito triste. O tempo ameniza um pouco, mas não apaga.
Folha - Se acontecesse hoje, a senhora agiria da mesma maneira?
Josefina - Sim.
Folha - A senhora tem alguma religião?
Josefina - Sou católica.
Folha - O que a senhora acha da posição da igreja, que condena o aborto?
Josefina - Nem Deus agrada a todo mundo. Será que já teve um episódio desses com alguém da família deles? Eles não procuram entender o drama que passa uma mãe, com uma filha deficiente, estuprada. Será que alguém já viveu isso na pele? Eu vivi e sei como é. É muito difícil.
Folha - Sua filha superou o episódio?
Josefina - Na época ela ficou muito nervosa, muito agressiva. Tive que levar em hospitais, para tomar calmante. Agora ela está mais calma. Ela é uma criança que cresceu demais. Ela tem corpo, tem físico de mulher, mas continua sendo uma criança.
Folha - A polícia prendeu o estuprador?
Josefina - Não conseguiram achar. Ele fugiu.
Folha - Foi fácil decidir pelo aborto?
Josefina - Consultei os meus filhos. Um deles me perguntou: "Mãe, a senhora está certa do que vai fazer?" Eu falei: seja o que Deus quiser. Se for para não fazer, vai acontecer alguma coisa na hora. Se não acontecer nada, eu vou fazer.
Folha - Então não foi fácil?
Josefina - Não. Mas eu tinha que tomar essa decisão.
Folha - Se sua filha não tivesse sido assistida em um hospital público, a senhora teria recorrido a uma clínica clandestina de aborto?
Josefina - Sim. Nem que tivesse que ficar pagando a prestação.
Folha - A senhora se sente mais distanciada de Deus?
Josefina - Não. Deus já me perdoou. Minha filha é praticamente uma criança. Acho que Deus não vai me castigar por isso. Pergunto: será que é melhor resolver esse tipo de problema ou pôr tanta criança no mundo, para viver jogada? Outra pergunta: se minha filha, deficiente mental, tivesse tido o filho, será que ele não seria doente como ela?
Folha - A senhora ainda frequenta a igreja?
Josefina - Eu vou. Hoje eu vou na católica, na presbiteriana.
Folha - A senhora acompanha a polêmica em torno da lei do aborto?
Josefina - Sim.
Folha - O ministro da Saúde acha que todo aborto é assassinato. É contra o projeto que obriga hospitais do SUS a realizar abortos. O que a senhora acha?
Josefina - Acho que os hospitais devem fazer. Só quem não faz são as mulheres pobres, de baixa renda, que não têm condições. As que têm condições vão lá e fazem quietinhas. Talvez até as parentes deles mesmo. Quem vai saber? Ninguém sabe. Eu acho que o SUS tem que apoiar as mulheres. Muitas precisam. Imagina uma mulher com cinco, seis filhos, mora num barraco de tábua, numa favela, ela não pode ter mais filho. Não está fácil criar uma criança hoje.
Folha - A senhora acha que a lei deveria liberar todos os tipos de aborto?
Josefina - Acho que deve ser uma decisão do marido e da mulher. Se eles estão vendo que não têm condições, cabe a eles tomar a decisão. Se existisse prevenção nos postos de saúde, se esclarecessem o povão, talvez não tivesse tanta criança jogada no mundo. Depois do que aconteceu com minha filha, fui procurar me informar. No hospital da (Vila Nova) Cachoeirinha, por exemplo, existe um planejamento. Os casais recebem informação. Eu queria fazer laqueadura na minha filha. Se ela arranjasse uma gravidez, começaria tudo de novo.
Folha - A senhora conseguiu fazer laqueadura na sua filha?
Josefina - Eu consegui. Com muito trabalho, mas consegui.
Folha - No hospital da Cachoeirinha?
Josefina - Não, não. Foi em outro hospital.
Folha - A senhora teve dificuldades?
Josefina - Tive muita dificuldade. Mas não queria entrar nesse mérito. Foi tudo regular, mas não queria falar disso.

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