São Paulo, segunda-feira, 1 de setembro de 1997
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Onde ser jovem é um privilégio

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Nova Délhi, Índia - Quando vem um parente mais velho em sua direção, é sinal de respeito abaixar-se e beijar seus pés. Essa é apenas uma das atribuições esperadas de um jovem indiano bem-comportado.
O sentido de hierarquia e obediência em relação aos mais velhos -especialmente os pais- é onipresente.
Desrespeitar os pais é crime mais grave que atropelar uma vaca. Esses dias, por exemplo, fui numa pequena festa de amigos indianos, mas notei que estavam meio inquietos. É que o caro que devia trazer maconha pra festa tinha sido proibido pelos pais de sair. Todos se entreolharam com uma certa tristeza, como se a proibição fosse uma lei. Mas aí alguém falou que o fulano era daqueles que mandavam os pais catar coquinho, e esse sinal de rebeldia foi muito mais surpreendente e iconoclasta para seus amigos do que a realidade de que o sujeito era um traficante...
Casar aqui, por exemplo, não é um ato de paixão na maioria dos casos. Os casamentos são arranjados pelos pais dos noivos e, apesar de os filhos terem um certo poder de veto (tipo: "Aquele gorda ranhenta de verruga no nariz, não"), sabem que no fim das contas o futuro esposo vai ser escolhido mesmo, então o melhor é relaxar. Depois do casamento, é costume a noiva ir morar na casa dos pais do noivo -que, neste caso, comporta sogros, pais de sogros e aí por diante, dependendo da longevidade da família em questão.
A mesma disciplina anterior ao casamento é mantida depois dele. (Com exceção, imagino, de sexo, mas achei melhor não perguntar em consideração à sogra-vó presente na ocasião). Sexo antes do casamento é improvável na Índia, porque seria tão desastroso para a reputação da mulher indiana quanto casar virgem para uma brasileira -quer dizer, sinal de algum desajuste. Além do que, seria em desrespeito profundo aos desígnios paternos, o que não é lá uma grande idéia, tendo-se em vista que os casais moram junto com os pais.
Contribui também para a vida "puritana" uma certa falta de estímulos: as boates não são lá essas coisas (com exceção de Bombaim, bem mais cosmopolita), bebida alcoólica em excesso é vista com grande reserva, e drogas não são muito usadas -com exceção da água local, que tem algo de alucinógeno capaz de te deixar siderado no banheiro uns três dias.
Então você pode estar achando que a vida do jovem indiano é chata, mas não é absolutamente verdade: estão muito ocupados, fofocando sobre quem saiu com quem, que roupa usar, onde passar as férias (Londres ou Bali?) e assuntos do gênero.
Além do que, viver na Índia já traz um certo grau de exotismo: aprender a dirigir, por exemplo, tem de necessariamente incluir algumas lições sobre como desviar das vacas que povoam o trânsito e dos pedintes que grudam nos carros a cada sinal.
Mesmo que a vida dos jovens daqui não seja tão agitada quanto a nossa, ninguém reclama muito. Sabe que ser jovem, na Índia, é um privilégio reservado a poucos: a grande maioria está se esforçando para sobreviver, e passa direto da tenra infância para uma maturidade sofrida.
Por mais que o pessoal boa-vida daqui se esmere em ignorar seus compatriotas em estado de miséria (por meio de vidros fechados, som a mil e óculos escuros), é impossível não notar a pesada linha que separa as pessoas dentro dos carros e as que os emporcalham, pedindo um pouco de comida, do lado de fora.

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