São Paulo, terça-feira, 2 de setembro de 1997
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Precisamos inventar um novo Bem e um novo Mal

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O papa vem aí. É o Bem encarnado. "Oba, chegou o Bem!" Mas o Bem tem de ser protegido pelo "papamóvel". Senão o Mal taca bala nele. O Bem vive dentro de uma cabine telefônica. Já pensou o papa, morto por uma bala perdida?
Viram aquelas mulheres gritando na TV contra a "lei do aborto"? Uivavam: "Não queremos uma lei que proteja estupradas e fetos doentes". Fiz uma frase: "Meu Deus, como a santidade é violenta!"
O Mal é o Bem ou o Bem é o Mal? O aborto legal é o Mal? O Bem é deixar nascer trágicos desgraçados? Outro dia, um bispo sugeriu que os filhos anormais ou de estupradas fossem criados pela igreja.
Já pensou? É o pior cenário: "Quem é você?". "Eu sou o filho do Bandido da Luz Vermelha, sendo educado pelo d. Lucas Moreira Neves..."
Antigamente, era mole. O Mal era o capitalismo, e o Bem, o socialismo. Agora os intelectuais, padres, bondosos profissionais, caridosos de carteirinha, cafetões da miséria, santos oportunistas, estão todos em pânico.
Se não houver um Mal claro, como seremos bons? O Mal é sempre o outro. Nunca somos nós. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou o Mal!". Ou: "Muito prazer, Diabo de Oliveira...".
O problema é que cada vez há mais "outros" e cada vez menos "nós". O Bem está virando um luxo, e o Mal está virando uma necessidade social.
Viver é praticar o Mal. Como ser feliz olhando as crianças famintas? Temos de fechar os olhos. A felicidade é uma virtude excludente.
"Sou feliz, se conseguir manter os olhos 'wide shut'." Ser feliz é não ver. O Mal está virando um mecanismo de defesa. Quem é o Mal: o assaltante faminto ou o assaltado rico?
Ou nenhum dos dois? É o neoliberalismo? Quem é o planejador do Mal? O Japão vai parar de produzir robôs e empregar a mão-de-obra faminta da Somália?
Quem controla o Mal? Pra uns, é o Consenso de Washington. Para outros, somos nós, os "da merda".
Como praticar o Bem? Apenas se horrorizando com o Mal? Como inventar uma práxis do Bem? Não vale ficar "tristinho", nem lançar apenas apelos à razão ou à caridade.
Eu fiz tudo para ser um homem de Bem. Serei um canalha? Todos se acusam mutuamente. Todos querem ser o Bem.
Durante o regime militar, todos éramos o Bem. O Mal eram os milicos. Acabou a dita, e as "vítimas" (dela) pilharam o Estado.
O que é o Bem hoje? É lamentar tristemente uma impotência, é um negror melancólico, é um elogio da morte? Ou o Bem é ser pragmático, frio?
O Bem é ser forte ou ser fraco? É uma identificação mecânica com os pobres ou um desejo protestante de melhorar na vida?
O Bem é um desejo de harmonia, de uno, de totalidade, ou o Bem é suportar ceticamente o múltiplo, o fragmento, o indizível, o incontrolável, a impotência "democrática"?
O sonho de Bem está milenarmente ligado à idéia de "totalidade". Pensamos com o corpo, queremos que o mundo seja um "todo harmônico" como o nosso organismo.
A idéia de "fragmentário" gera angústia porque lembra a morte. Todo pensamento (todo "Bem") aspira à totalidade.
Mas, com a queda das utopias, a razão se disfarça e finge querer a diferença. Tudo mentira. O culto ao fragmentário se reerige em totalidade e começa tudo de novo. (Cruzes, a boneca está filosófica hoje...)
O problema hoje é que o Mal quer ser Bem. Até o Unabomber é o Bem. O Mal hoje é um excluído. Até pelo próprio Mal.
Onde está o Mal? Entre os terroristas, no meio da miséria, entre fezes? O Mal ficou arcaico.
Tanto que o Mal dos terroristas argelinos, por exemplo, consiste em injetar o arcaico no moderno, esse inferno "clean" que o capital inventou.
Ao denunciar o Mal, vivemos dele. Eu lucro sendo bom e denunciando o Mal. Quanta violência sob a santidade, repito.
E não adianta tentar a "beleza do Mal" como saída, como busca invertida do Bem. Já foi tentado: o culto à perversão, a antiarte, tudo, não deu em nada. Há uma nova categoria de Mal a ser inventada.
Para a razão digital, o Mal no mundo atual é o "incompreensível". Como diz Baudrillard, "contra o Mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos".
Quando (digo eu) só o Mal pode dar conta do Mal, o Bem tem de conhecer o Mal e se travestir dele para combatê-lo. O Bem ingênuo só serve de alimento para o Mal.
No Brasil, o Mal, o grande Mal, não tem importância. O perigo aqui é o pequeno Mal, enquistado nos estamentos, nos aparelhos sutis do Estado, nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei.
Aqui o perigo é o Bem. O Mal no Brasil não estava em Collor (sempre senti um certo exagero histérico no ódio que lhe dedicamos), o Mal está aqui nos pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida.
Aqui o grande canalha serve para camuflar os pequenos (que são os grandes) canalhas. O Mal do Brasil não está na infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas, está mais na sua cordialidade. O Mal está no mínimo.
"É um Mal não frequentar o Bem", como dizia o slogan do "Bar Bem", onde íamos comer as putas na Barra da Tijuca do passado, quando não havia motéis, quando pecávamos em grande liberdade, imersos na vergonha e no delicioso sentimento de culpa.

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