São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Uma aventura artística incomum

ROBERTO SCHWARZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O romance de estréia de Paulo Lins, um catatau de 550 páginas sobre a expansão da criminalidade em Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, merece ser saudado como um acontecimento. O interesse explosivo do assunto, o tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente, tudo contribuiu para a aventura artística fora do comum. A literatura no caso foi levada a explorar possibilidades robustas, que pelo visto existem.
Para indicar os novos tempos, o autor fala em "neofavela", por oposição à favela em acepção antiga, que foi reformada pela guerra entre os traficantes de droga e pela correspondente violência e corrupção da polícia. É este o processo que o romance recria, numa escala numerosa, com algo de enciclopédia, que lembra as grandes produções de cinema sobre o gangsterismo.
No parágrafo de abertura, que é sutil, encontramos as pautas clássicas da vida popular brasileira, em toda a sua graça. Enquanto divide o baseado com um amigo, Barbantinho sonha com o futuro. Quer ser um salva-vidas com bom preparo físico. Não um desses relaxados, que por falta de exercício deixam o mar levar as pessoas. Até mesmo depois do expediente o menino cuidaria da forma, aproveitando o percurso entre a praia e sua casa para correr. "O certo era malhar sempre, alimentar-se bem, nadar o máximo possível." Em boa paz e sem susto para a consciência, o pé na ilegalidade convive com a disposição prestativa, a ambição modesta, o respeito aos conselhos de quem sabe, o horário de trabalho, a atualização com o figurino em matéria de saúde, além da proteção de Iemanjá. Acresce que o pai e o irmão de Barbantinho também são salva-vidas, de modo que o menino está seguindo o bom exemplo.
Nas páginas seguintes, conduzidas de modo talvez um pouco indeciso, essa constelação cordata e otimista vai ser questionada pela pobreza, o desemprego e, sobretudo, pelos primeiros cadáveres boiando no rio que corre ao lado da favela. O aspecto da vida popular que irá prevalecer é outro. A diferença, que ressurge a todo momento, tem função estrutural e como que esboça uma perspectiva histórica.
Com o primeiro assalto e a entrada em cena dos bandidos, o livro adquire o andamento que fascinará o leitor até o final. Uma interpretação à altura do romance vai depender da contemplação e análise deste dinamismo poderoso.
No plano direto da movimentação, há a visibilidade realçada, à maneira do filme de ação. De revólver na mão, Marreco, Alicate e Cabeleira, o chamado Trio Ternura, "passaram correndo pelo Lazer, entraram pela praça da Loura, saíram em frente ao bar do Pinguim, onde estava parado o caminhão de gás" que iriam assaltar. Chutam a cara do trabalhador que, deitado no chão, tentava esconder o dinheiro. A palavra "trabalhador" torna mais condenável a violência dos bandidos? Ou pelo contrário ela escarnece do otário que os quis enganar? Impossível dizer. A ambivalência no vocabulário traduz a instabilidade dos pontos de vista embutidos na ação, um certo negaceio malandro entre ordem e desordem (para retomar, noutra etapa, a terminologia de "Dialética da Malandragem"). Aliás, os mesmos assaltantes franqueiam os bujões de gás ao pessoal assustado, que saía de fininho, mas num minuto leva toda a mercadoria. Tudo tão claro quanto complicado.
O apuro da coreografia combina-se à indistinção entre o bem e o mal. Quando trocam tiros, a autoridade e os bandidos põem "meia cara na quina da esquina". O acerto da expressão, com rima interna e tudo, faz pensar que não só a arte decanta a vida como também a vida se inspira nos seriados de televisão a que bandidos e policiais assistem. As fugas e perseguições mostram a favela como uma sucessão de muros precários, quintais e becos, onde quem dá a volta para surpreender o outro pelas costas topa de frente com o terceiro que não queria encontrar etc. A intensidade e o perigo das ações, bem como a nitidez do cenário, como que concebido sob encomenda, criam uma certa empatia, a que entretanto a brutalidade monstruosa logo tira o sabor de aventura. Sobra uma espécie de compreensão atônita.
Em plano menos palpável há a quase-padronização das sequências, sinistramente monótonas em sua variação. Depois de uma ou outra droga ou diversão vem a saída para um assalto, com ou sem morte, para um estupro, para uma vingança amorosa, para a eliminação de bandidos de outro bando, ou também de inimigos dentro do próprio etc. Os passeios com propósito de distração, para jogar bola na praia ou armar rolo numa festa, depois de alguma confusão tendem para o mesmo desenlace, o que é uma das linhas evolutivas amargas do livro. Depois vem a fuga, a pé, de ônibus, em carro roubado ou táxi, e o entocamento para passarem as 24 horas do flagrante. Trancados num quarto qualquer, os "bichos-soltos" tomam leite ou precisam de mais droga para recuperar a calma e dormir.
Sem prejuízo da repetição constante dessas sequências, o movimento vai em crescendo, numa direção que é o problema a encarar, ou ainda, que é o presente inextricável. A cadência ampla do livro depende mais das mudanças de patamar que de pontos de inflexão na vida individual, embora estes tampouco faltem. Veja-se por exemplo um assalto de motel que toma rumo bárbaro, com muitas mortes e perseguição policial. Na mesma noite um homem se vinga da traição da amada cortando em pedaços a criança branca que ela dera à luz. Noutra esquina um trabalhador decepa o rival com um golpe de foice. Não há ligação entre os crimes, mas no dia seguinte Cidade de Deus saía do anonimato e passava a figurar na primeira página dos jornais como um dos lugares violentos do Rio de Janeiro. A importância dos bandidos aumenta aos olhos dos outros e deles próprios. O assalto ao motel, que dera em chacina por nervosismo dos ladrões, transformava-se num feito notável, aumentando a autoridade dos bandidos e o terror que inspiram. Estava formado o novo mecanismo de integração perversa: as piores desumanidades adquirem sinal positivo uma vez que alcancem sair na mídia, uma espécie de aliada para romper a barreira da exclusão social. "- Todo bandido tem que ser famoso pra nego respeitar legal! -disse Cabeleira a Pretinho."
Agitado pelo ferimento de um amigo, Zé Pequeno barbariza a esmo, murmura rezas incompreensíveis, manda comprar carne para um churrasco e põe o seu bando em vigília de guerra à base de cocaína. No dia seguinte o grupo sai de olho arregalado, rilhando os dentes e matando, mas, inesperadamente, não falta método à sua fúria: as vítimas são os donos das bocas de fumo. A pretexto de vingança, Zé Pequeno passava de assaltante a chefe local do tráfico, logo interessado num clima de ordem dentro do terror, de modo a não afastar os fregueses de fora. Como no outro caso, em que desgraças quaisquer empurraram o banditismo desorganizado para um nível superior de integração, também aqui o acaso de um furor pessoal faz deslanchar o processo de unificação do poder e do negócio local. A imensa desproporção entre a causa imediata e o resultado "necessário" é um desses nexos em que sentimos o peso inexorável da história contemporânea.
Ao acaso dos episódios, vão pingando elementos de periodização, comuns à ordem interna da ficção e à realidade: do roubo por conta própria à organização em quadrilha, do imprevisto dos assaltos ao negócio regular da droga, do revólver simples ao armamento de especialista (no auge da luta entre quadrilhas, Zé Pequeno, que não tem medo de nada, tenta negociar fuzis usados na guerra das Malvinas), da espreita de ocasiões ao controle e gerência de um território. Em vagas sucessivas, a violência cresce e a idade dos criminosos diminui. Na situação chega a parecer lógico que chefes de 17 anos designem soldados de 12 ou 10, menos vigiados, para a tarefa de fuzilar o dono de outra boca de fumo, que terá 18. Com lágrimas nos olhos, a missão será cumprida, para subir no conceito dos demais e alcançar logo as prerrogativas do "sujeito homem".
Quais as fronteiras desta dinâmica? A ação move-se no mundo fechado de Cidade de Deus, com uns poucos momentos fora, sobretudo em presídios, para acompanhar o destino das personagens. Embora apresentado em grande escala, o curso das coisas está em versão restrita em relação a suas premissas: as esferas superiores do negócio de drogas e de armas, a corrupção política e militar que lhe assegura o espaço, não comparecem. Já os seus prepostos locais, quando não são os próprios bandidos, pouco se distinguem destes. A não ser por raros flashes, que no entanto bastam para sugerir a afinidade de todos com todos, a administração pública e a especulação imobiliária que estão na origem da segregação da favela tampouco aparecem.
Literariamente, a órbita limitada funciona como força, pois ela dramatiza a cegueira e a segmentação do processo: em seu ramo, reservado aos desvalidos, os chefes de bando não deixam de ser potências, criaturas que entre outras coisas usaram a cabeça e aprenderam lições duríssimas, isso sem falar na incalculável tensão nervosa que suportam a todo momento. Nem por isso deixam de ser pobres diabos, que morrem como moscas, longe da opulência que nalgum lugar o tráfico deve proporcionar.
A oscilação vertiginosa na estatura das personagens, conforme o ângulo pelo qual se encarem, formaliza e dá realidade literária à fratura social, que se reproduz dentro também da esfera do crime. Morto no chão, o senhor violento e astuto da vida e da morte dos outros é um menino desdentado, desnutrido e analfabeto, muitas vezes descalço e de bermudas, de cor sempre escura, o ponto de acumulação de todas as injustiças de nossa sociedade. Se por um lado o crime forma um universo à parte, interessante em si mesmo e propício à estetização, por outro ele não fica fora da cidade comum, o que proíbe o distanciamento estético, obrigando à leitura engajada, quando mais não seja por medo. Trata-se de uma situação literária com qualidades próprias.
Colado à ação, o ponto de vista narrativo lhe capta as alternativas próximas, a lógica e os impasses. O imediatismo do recorte reproduz a pressão do perigo e da necessidade a que as personagens estão submetidas. Daí uma espécie de realidade irrecorrível, uma objetividade absurda, decorrência do acossamento, que deixam o juízo moral sem chão. Dito isso, estamos longe do exotismo ou do sadismo da literatura comercial de assunto semelhante. O horizonte reduzido é claramente uma desgraça geral, cuja extensão cabe ao leitor avaliar. Como não entender, por exemplo, que os meninos pequenos se iniciem assaltando velhos e mulheres grávidas? Há lógica igualmente em bater em acidentados para poder roubá-los. É compreensível que as mulheres do meretrício assaltem quando não encontram freguês; que os bandidos sejam muito nervosos; que fulano nunca haja "mantido relações sexuais com uma mulher por livre vontade dela"; que o melhor meio de fuga seja o ônibus, porque "preto que toma táxi ou é bandido, ou está doente à beira da morte". Etc. etc. A matéria é de humor negro e mundo cão, mas está noutro espírito.
O foco da ação, que a todo momento se precipita para soluções fatais, imprime ao livro o ritmo sem trégua. Ligada a essa rotina da tensão máxima, a trivialização da morte empurra para um ponto de vista desabusado e abrangente, a um passo da estatística, quer dizer, superior às emoções do suspense, ou ainda, voltado para coordenadas supra-individuais, de classe, as quais no caso são decisivas. A intimidade com o horror, bem como a necessidade de encará-lo com distância, se possível esclarecida, é uma situação moderna.
Como o antigo naturalismo, o romance de Paulo Lins deve parte da envergadura e da disposição ousada à parceria com a enquete social. Lembrando que a constelação histórica é outra, talvez se possa dizer que em "Cidade de Deus" os resultados de uma pesquisa ampla e muito relevante -o projeto da antropóloga Alba Zaluar sobre "Crime e Criminalidade no Rio de Janeiro"- foram ficcionalizados do ponto de vista de quem era o objeto do estudo, com a correspondente ativação de um ponto de vista de classe diferente (mas sem promoção de ilusões políticas no capítulo).

Continua à pág. 5-13

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