São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Fofoca e bisbilhotice nascem com o homem

NELSON ASCHER
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O homem, como alguns insetos, vários pássaros e muitos de seus primos, os primatas, é um ser social. Dois detalhes, no entanto, o diferenciam: a fala e o sexo feito preferencialmente às escondidas.
Desde que o ser humano é humano, aquela tem sido usada para tornar pública a privacidade deste, sobretudo quando há em jogo algum tipo de transgressão. Tão logo um Cro-Magnon qualquer começou a combinar vogais e consoantes, antes mesmo de arriscar uma frase como "vamos acender uma fogueira para assar este mamute recém-caçado", ele já dispunha de um tema preferencial, qual seja: "Sabe o que aqueles dois estão fazendo lá no fundo da caverna vizinha?"
Quem achar essa hipótese um pastiche anedótico, que leia o antropólogo Napoleon Chagnon. O grande especialista nos índios ianomâmi assegura que, se existe um lugar impossível para o adultério, esse lugar é a floresta tropical, pois nenhum casal ilícito pode sair discretamente de sua taba sem ser seguido sorrateiramente por um bando de curumins disposto a voltar correndo e contar à tribo inteira o que testemunhou.
Em resumo, basta haver linguagem articulada e libido praticada privadamente para que haja fofocas.
Restam, porém, mais duas pré-condições: uma é a capacidade de mentir, ou pelo menos, exagerar, que já vem mesmo incluída, como um brinde, na linguagem; a outra é um padrão característico de comportamento sexual que desperte ainda mais a curiosidade geral. Segundo o etno-biólogo Jarred Diamond, o padrão humano não poderia, neste sentido, ser mais ideal, pois tudo indica que o macaco que ele chama de o "terceiro chimpanzé" associa, à monogamia habitual, uma poligamia oportunista.
Os antigos gregos já tinham a decência de reconhecer isso na mitologia, pois Zeus, o "big boss" do Olimpo, só possuía uma esposa, Hera, que, no entanto, passava parte substancial de sua vida eterna perseguindo os "casinhos" do maridão.
E Afrodite, a deusa do amor, que havia se casado com um ferreiro manco, o deus Vulcano, deu também sua escapada com Ares, o másculo deus da guerra, escapada que, como no caso dos ianomâmi, foi imediatamente descoberta e comentada, entre dois goles de néctar ou hidromel, por toda a boa sociedade divina.
No mundo inferior dos homens, a primeira epopéia, a "Ilíada", ocupa-se principalmente das batalhas dos gregos contra os troianos, embora mesmo nela haja espaço para se insinuar um rápido "affair" entre Aquiles e Pátroclos e, a bem da verdade, não só a guerra de Tróia havia se originado num adultério (decorrente, por sua vez, de um concurso de beleza fraudado), como também a trama do poema de Homero é desencadeada pelo desentendimento entre Aquiles e Agamenon.
E qual havia sido o motivo? Obviamente uma mulher: Criseida. Se isso não é mexerico, então o finado Ibrahim Sued era um poeta épico, e os departamentos de letras clássicas não deveriam esperar mais para acrescentar, ao seu currículo básico, os tablóides britânicos.
Boa parte da epopéia homérica seguinte, a "Odisséia", consiste na narrativa das deusas, feiticeiras e rainhas com as quais Odisseu deu um tempinho enquanto alegava, como a média dos maridos, ter ficado (dez anos) preso num engarrafamento daqueles no mar Egeu.
E, se bem que Robert Graves tivesse sugerido que o texto poderia ter tido não um autor, mas uma autora, a história paralela dos 20 anos de fidelidade da mulher de Odisseu, Penélope, deve levar o leitor sensato a entrever a mão censória do marido na versão que nos chegou.
Depois dos gregos Heródoto, o "pai da mentira", que estava mais para guia turístico, e Tucídides, demasiadamente ocupado com a Guerra do Peloponeso, vieram os historiadores latinos que, por sorte, tinham uma família real ou, mais precisamente, imperial para bisbilhotar.
Assim, o "best-seller" já quase duplamente milenar "Os Doze Césares", de Suetônio, é basicamente uma crônica dos escândalos da corte. Tácito nem sempre é melhor -se é que isso é ruim- e, no começo da era bizantina, 1.500 anos atrás, um outro historiador, Procópio, superou a todos escrevendo sua "História Secreta" (que título, não?), cujo assunto central era a (segundo ele) escabrosa vida íntima da imperatriz Teodora.
Alguns séculos depois surgiu um poema narrativo que muitos consideram não só o melhor da Idade Média, mas também o ápice da literatura ocidental: a "Divina Comédia", de Dante Alighieri.
Nela, o italiano distribuiu tanto seus conhecidos quanto pessoas das quais só ouvira falar pelo Inferno, Purgatório e Paraíso, contando direitinho por que cada qual fora parar onde parou.
Não é à toa que um dos maiores críticos atuais, George Steiner, apelidou a obra de "the gossip of eternity", isto é, "o mexerico da eternidade".
A fofoca, além de ter uma trajetória respeitável, é uma das responsáveis pela existência da literatura e da historiografia, além da biografia, que é a fofoca respeitável. Sua necessidade em nossa espécie é tão patente que chegamos a inventar algo chamado genericamente de ficção só para podermos nos intrometer na vida privada de pessoas que nem sequer existem.
Perseguir uma princesa em alta velocidade para obter algumas fotos é naturalmente um abuso, e vasculhar joalherias para saber que colar lhe deu seu namorado, mais do que invasivo, mais do que de mau gosto, é profundamente tedioso.
Mas afirmar -da boca para fora- que não se deve invadir a intimidade dos ricos, famosos e poderosos é pura hipocrisia. Uma hipocrisia destinada, aliás, a salvaguardar a hipocrisia deles que, ditando, ao comum dos mortais, padrões de moralidade e comportamento, raramente se julgam obrigados a cumpri-los.
Sempre que a imprensa marrom flagra, agarrando um garoto, um padre que prega castidade, ou entrando num motel com uma loura oxigenada um pastor que combate a pornografia, ou numa suruba um deputado que vota contra o aborto, ela presta à sociedade um serviço inestimável.
Há algo de saudavelmente humano, civilizado e democrático nos mexericos, fofocas, fuxicos, diz-que-diz-que, boatos, rumores e bisbilhotice, porque eles reafirmam que reis e rainhas, príncipes e princesas, presidentes e papas, atores, atrizes, popstars e topmodels são gente de carne e osso como todos nós.

Texto Anterior: Morte preservou imagem virgem de Diana
Próximo Texto: Madre Teresa receberá honras de Estado
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.