São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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"Telepaparazzi" transformam horrores íntimos em espetáculo

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

A morte da princesa Diana colocou a invasão da privacidade pela mídia na berlinda. Já se falou e escreveu muito sobre o caso, o que comprova mais uma vez que, por trás de espasmos de indignação e manifestações de sentimentalismo, o mercado é, sim, ávido e tarado por bisbilhotices, sejam elas glamourosas ou mórbidas. Diana serviu às duas modalidades.
É bom insistir um pouco no assunto. Não para falar sobre a princesa (chega disso), mas para ver mais de perto algumas formas que a tal invasão da privacidade assume na TV.
O programa "Márcia", sucesso da atual cruzada popularesca do SBT, é um caso exemplar. Trata-se de uma versão depreciada ou trash do programa "Silvia Poppovic". Neste, senhoras da classe média se reúnem para "discutir", com a ajuda de especialistas, um buquê de problemas da esfera privada.
Márcia vai mais longe. Elimina a mediação da conversa e passa da sala de estar à área de serviço. No seu programa, o "povo" lava a roupa suja diante do país como se estivesse conversando com a vizinha.
Para o tipo de gente que vai ao programa -eufemisticamente classificado como classes "c" e "d"-, a família não existe como elo entre a vida pessoal e a sociedade. Nesse universo selvagem, há ausência de mediação familiar, estrutura psicológica e formas de proteção da intimidade. Qualquer problema doméstico se transforma em caso de polícia. A passagem da cozinha para a sala do delegado se dá sem escalas.
Márcia faz um pouco essa função do delegado. A propósito, não é à toa que há na Bandeirantes um outro programa, "Brasil Verdade", em que a delegada Rose atua como conselheira. O casalzinho que brigou vai lá, cada um solta os seus cachorros e a delegada finalmente os reconcilia diante das câmeras.
Não há noção do constrangimento porque a rigor não há diferença entre a casa, a delegacia e o estúdio de TV. Nesse mundo, nada é público porque nada é privado.
Silvio Santos também tem um quadro parecido, intitulado "Em Nome do Amor". Num cenário em que há portas sugerindo a entrada de igrejas, grinaldas gigantescas e luzes néon piscando por todos os lados, o apresentador reúne o casal em litígio, aproxima-o e faz com que manifeste seu "amor" no ar.
Depois, assumindo-se como padrinho de uma segunda "lua-de-mel", despacha os coitados para alguma cidadezinha e documenta a viagem, que exibe ao público como um conto de fadas, idêntico ao casamento de Charles e Diana. É cruel.
O programa "Márcia", no entanto, chama particularmente a atenção porque tem sido festejado pela "moçada" que lê jornais como um cult.
Funciona como Athayde Patreze: é tão ruim que passa a ser bom. Isso lembra também o caso do cineasta Ed Wood -o pior de todos os tempos-, transformado em objeto de culto pelo público supostamente civilizado.
É preciso desconfiar um pouco dessa distância irônica que a classe média invoca para poder se divertir com o lixo destinado ao povo sem contudo se confundir com o povo.
O sucesso editorial da revista "Caras" é um sinal muito eloquente de que as pessoas "chiques" que agora se arvoram contra a invasão da privacidade agem cotidianamente como aqueles infelizes que vão se insultar diante das câmeras no programa de Márcia.
Na nossa época o "star system" comeu a vida pública pelas bordas até reduzi-la a praticamente nada (ou, quem sabe, à "ilha de Caras", onde todos se encontram).
Como falar, então, em "invasão" de privacidade? Alguém já disse que "quando tudo é ruim, é preciso ser suficientemente bom para conhecer o pior".

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