São Paulo, quarta-feira, 10 de setembro de 1997
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Dentaduras e o inconsciente fernandohenriqueano

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O assunto ficou um pouco obscurecido com a morte de Lady Di, mas não deixa de ser intrigante. Depois do frango e do iogurte, seriam as dentaduras o novo símbolo do Plano Real: eis o que disse o presidente Fernando Henrique, em pronunciamento público há cerca de 15 dias.
A primeira reação foi a saudável gargalhada de um assessor, que ecoou pela sala de conferências antes de ser reprimida por FHC. O presidente estava falando sério.
Logo depois, revelou-se que a associação dos protéticos dentários não comungava do otimismo presidencial; há poucos indícios de aumento no consumo de dentaduras.
O que me parece estranho é a escolha do símbolo. Por que dentaduras? Por que não arados, óculos, bicicletas, telefones? Tento aproximar-me do inconsciente fernandohenriqueano.
Uma primeira hipótese. O presidente ficou chocado, como todos, ao ver a libertação do Bandido da Luz Vermelha. O suposto galã e assassino tinha poucos, pouquíssimos dentes na boca. Não era mais a imagem do perigo -perigo "vermelho"?-, e sim uma figura da Praça da Alegria, aparentemente inofensiva apesar de hedionda.
Luz Vermelha ficou preso 30 anos. Em 1967, os tempos eram de ditadura e contestação. Che Guevara hoje é assunto de biógrafos americanos e de necrofilia sebastianista. Outro dia Fidel Castro apareceu na televisão, para desmentir, como todo bom ditador, os rumores em torno de sua morte; discursou com voz fina, de velhinho. Ainda está com os dentes, mas não morde mais.
Agora, Luz Vermelha se reintegra à sociedade. Mas fica a pergunta no ar: o preço por isso terá sido o de perder os dentes na prisão?
O raciocínio é puramente especulativo, mas não haveria uma solidariedade inconsciente entre a idéia do "esqueçam o que escrevi" e a atual falta de dentes do galã que aterrorizava a classe média?
Passo, entretanto, a uma segunda hipótese. Na idéia de que o Plano Real vai oferecer dentaduras ao povão, estaria presente o contrário do que eu dizia acima. Não mais a nostalgia pelo velho tigre da esquerda, e sim a volta ao velho esquema dos currais eleitorais.
É sabido que, nos grotões do Brasil, sempre se conseguiu o voto do capiau, do tabaréu, do cassaco de engenho, em troca desses bens materiais: um par de sapatos, o primeiro pé antes, o segundo depois da eleição; pares de óculos, pares de dentaduras.
Ao prometer dentaduras, FHC inconscientemente estaria pensando numa reeleição ao estilo do PFL. E, por falar em PFL, não é invasão de intimidade reparar nos dentes da frente de Antônio Carlos Magalhães.
São separadinhos, conferem malícia à figura, algo de esquilo ou de coelho, uma presteza capaz de neutralizar, em parte, a imagem de domínio regional e truculência política.
Mas a impressão de uma oligarquia roedora, predatória e gordinha teria de ser dissolvida no atual governo. A idéia de Fernando Henrique seria, portanto, a de propor dentaduras mais regulares a seus próprios aliados (Luís Eduardo, por que não?). Não deixa de ser modernizante.
Mas aqui entramos na terceira hipótese. É o próprio sorriso de Fernando Henrique que está em questão. Como se sabe, o presidente sorri muito. Alguns chargistas, como Angeli, exageram, a meu ver, a irregularidade dos dentes de FHC. Retratam-no como uma espécie de jacaré depois da reengenharia empresarial.
Reengenharia rima com reeleição. Pensando em dentaduras novas para todos, o presidente pensa num novo mandato, em que pudesse sorrir mais e melhor. "Sem medo de ser feliz", o slogan de Lula, numa campanha eleitoral passada, precisa de mais dentes para que FHC o transfira integralmente para a vida prática e a regularidade ortodentária.
Há ainda uma quarta hipótese. Por volta de 1974 ou 1975, o país estava entusiasmado com a "abertura" do presidente Geisel.
O caminho para a democracia aparentava estar sendo conduzido com mão firme. Houve então um famoso discurso, em que Geisel frustrou as esperanças dos democratas, dizendo que nunca haveria democracia real no país enquanto a maioria da população fosse desdentada. O que é até certo ponto verdade, mas não deixava de ser pretexto para prolongar o regime autoritário.
Será que no inconsciente cardosiano a menção a dentaduras não tem algo a ver com a frase de Geisel? É como se FHC estivesse dizendo: "Enquanto houver alguém sem dentes, justifica-se minha presença no poder...". Dentadura rimaria então, obviamente, com ditadura.
Mas não confundo ditadura com reeleição. Obviamente, são processos distintos, e nem sequer chego a ser contrário ao direito de um governante tentar se reeleger. As tentativas da Comissão de Justiça da Câmara para abolir os dois turnos excedem um pouco minha capacidade de tolerância, mas o inconsciente de FHC pode estar sendo interpretado corretamente pelos puxa-sacos de plantão.
"Dentaduras duplas! Inda não sou bem velho para merecer-vos... Há que contentar-me com uma ponte móvel e esparsas coroas", dizia o poeta Drummond nos anos 40. A reeleição, para Fernando Henrique, é uma dentadura dupla; melhor, em todo caso, do que a "esparsa coroa" em que ele está refestelado.
Ou será que não? Há um monarquismo informal, benévolo e dúbio, em FHC; a reeleição duplica, com toques oligárquicos, o presidencialismo. As mandíbulas das caveiras dos mortos em Eldorado dos Carajás estalam, como num aplauso sinistro.
A teoria da dependência, a sociologia de FHC, foi sempre crítica a respeito do "dualismo" -a idéia de um Brasil moderno contra o Brasil arcaico. Substituiu esse dualismo por uma duplicidade; o arcaico e o moderno articulam-se, como a arcada superior e a arcada inferior de uma dentadura. Os outros que roam esse osso.

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