São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 1997 |
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Muhammad Ali enfrenta o Ocidente
DA REPORTAGEM LOCAL Vencedor do Oscar de melhor documentário neste ano, "Quando Éramos Reis", de Leon Gast, é, descontada toda leitura romântica possível, um filme sobre uma grande batalha e constantes derrotas. Uma série delas.Coloca frente a frente a carismática personalidade de um lutador de boxe único (um ídolo mais que um atleta), a cultura norte-americana, a colonização na África e a idéia de liberdade para um povo. "Quando Éramos Reis" mostra a cena em torno dos lutadores Muhammad Ali e George Foreman que, em 1974, em um estádio no antigo Zaire -ainda sob a ditadura de Mobutu- se encontraram motivados por um bom pagamento e a ambição em descobrir qual dos dois era o melhor. Ali, no período, representava uma verdadeira ameaça, quase uma afronta moral, para parte de seu país, inconformado com a radicalização do discurso do movimento pela igualdade dos direitos da população negra nos EUA. Sua atitude era de afronta e ironia incessantes. Considerado por muitos o mais genial lutador de boxe da história, Ali havia se tornado um verdadeiro herói para o que ele mesmo chamava de "meu povo", assumindo então a necessidade do retorno ao passado e aos costumes africanos. É em torno dessa "nova esperança" que um verdadeiro circo se arma ao redor do evento. São convocados músicos e bailarinas, que viajam dos Estados Unidos para, no Zaire, realizar um "Woodstock negro". Gast surge nesse cenário quase como um acidente. O que mais lhe interessava era a luta e os shows e não a política racial. O acaso muda sua rota. George Foreman se machuca durante os treinos, e tudo tem de ser adiado. Enquanto espera, Gast resolve descobrir algo da intimidade de Ali e termina fascinado por suas atitudes e idéias. "Quando Éramos Reis" é o resultado dessa tentativa -por vezes desesperada- de desvendar uma personalidade. Fruto do desejo de entender o que faz um homem ser, para todos ao redor, incomum. Durante o filme, Gast é nocauteado algumas vezes, consegue bons golpes, mas termina em um empate técnico contra sua própria ambição. Ao fazer de Ali o agente e mentor de uma situação histórica, termina muitas vezes por se perder em reducionismos que aproximam seu documentário da ficção. Gast acredita na causa de Ali, ainda que muitas vezes a critique. Mas é inegável o talento e a beleza desse filme incomum, talvez grandioso por sua imperfeição. Gast fez um filme de lutas -das sociais, pessoais e físicas- em que a violência está restrita ao território da política, assim nos ensinando duas ou três coisas sobre o que é, de fato, a brutalidade. Há ternura e fé em cada golpe, nos testemunhos emocionados do romancista Norman Mailer, relembrando sua experiência no Zaire, ou em jovens que sonham com um autógrafo de um lutador. E há também o macabro nas atitudes do ditador Mobutu, que manda assassinar cada um de seus oponentes, e no medo de uma população traumatizada com o passado de colônia da Europa. "Quando Éramos Reis" é então o filme sobre o mundo de Ali, os erros do movimento negro e a culpa do racismo ocidental. Uma raridade obrigatória. Filme: Quando Éramos Reis Produção: EUA, 1996 Direção: Leon Gast Com: Muhammad Ali, Norman Mailer Quando: a partir de hoje, no Belas Artes - sala Aleijadinho Texto Anterior: 'O Oitavo Dia' relativiza normalidade Próximo Texto: Campeão atacou racismo Índice |
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