São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 1997
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Poder Judiciário e imprensa

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Tenho, durante minha vida, destacado em inúmeros escritos a importância da independência do Poder Judiciário e da liberdade de imprensa para garantir uma autêntica democracia, que muitas vezes poderia ser deturpada se apenas se ofertasse ao povo o direito de eleger alguns candidatos pré-escolhidos por agremiações políticas sem participação popular.
Democracia não é somente eleição direta. Se não houver mecanismos capazes de controlar o poder, a representação da sociedade não tem significação, pois cada parlamentar sente-se titular de seu mandato e não agente daquele que o elegeu.
A inexistência da fidelidade partidária, por exemplo, ao permitir que um deputado mude de partido no exercício do mandato, transforma-o em traidor dos eleitores de outros candidatos da legenda abandonada, no caso de esse deputado ter sido eleito com os votos complementares da legenda, além de trair seus próprios eleitores por adotar ideologia política diversa daquela que sufragaram nas urnas.
Num país sem voto distrital -o que inviabiliza possa o eleitor controlar, em sua região, o parlamentar em que votou- e com os critérios de representatividade absolutamente iníquos -o que faz do Congresso Nacional uma casa em que a maioria dos parlamentares representa, em verdade, a minoria da nação-, a democracia brasileira seria frágil se a imprensa e o Poder Judiciário não estivessem aptos a defender a cidadania contra os excessos dos Poderes Executivo e Legislativo, mormente no sistema presidencialista, que se diz ser o regime da "irresponsabilidade a prazo certo", em contraposição ao parlamentarismo, que é o sistema da "responsabilidade a prazo incerto".
Ora, no momento em que, apesar das limitações institucionais, Judiciário e imprensa cumprem seu papel de defensores da cidadania, nuvens de cerceamento à sua independência e à sua liberdade surgem nos horizontes parlamentares.
De um lado, há um projeto de reforma do Judiciário cujo objetivo é mais o de subordiná-lo aos Poderes políticos (Legislativo e Executivo) que lhe permitir exercer o controle; de outro, uma Lei de Imprensa que intenta silenciar a liberdade de expressão pela amplificação da malfadada indústria de indenizações por danos morais.
Trata-se de uma nova forma de ganhar dinheiro fácil por meio de pretendidos danos morais insuportáveis, só elimináveis com um bom punhado de reais, como se a honra neste país tivesse sempre um preço.
Os abusos já começam a ser notados. Basta citar casos recentemente divulgados pela imprensa, julgados em determinado Estado da Federação, em que simples erro na devolução de cheques teria gerado brutal dor moral, somente aplacada por indenização de milhões de dólares; logo depois, os próprios julgadores teriam se beneficiado pela jurisprudência criada para também sanar sua dor moral com indenização milionária, pois cheques de sua emissão teriam sido igualmente devolvidos.
Ora, tal situação -que, felizmente, não é a que prevalece nos Estados mais desenvolvidos da Federação, que contam com magistrados mais experientes, habituados a enfrentar problemas jurídicos mais complexos pelo próprio estágio de desenvolvimento da unidade federativa, não dependente de transferências de recursos de outros Estados como ocorre com a maior parte dos Estados brasileiros- é aquela que se pretende plasmar na nova Lei de Imprensa, surgida da irritação de alguns parlamentares com a preocupação constante dos jornais brasileiros de vigiar o comportamento dos representantes do povo nos mandatos que exercem.
É compreensível que muitas vezes se irritem, até porque em alguns casos a imprensa se excede, merecendo censura nessa hipótese. O "excesso" é, todavia, a "exceção"; infelizmente, muitos dos escândalos denunciados até agora pela imprensa eram escândalos reais e, sem essa divulgação, o povo estaria sendo iludido por aqueles que elegeu.
Ora, na nova Lei de Imprensa, pretende-se retirar qualquer teto para indenização por danos morais, de tal maneira que a liberdade da imprensa ficaria seriamente ameaçada, na medida em que duas ou três indenizações desarrazoadas poderiam implicar a eliminação de alguns veículos, além de encerrar carreiras de jornalistas, pois a solidariedade entre o veículo e o jornalista, no plano da responsabilização civil, está expressa na legislação que se pretende aprovar.
Os dois projetos de reforma constitucional do Poder Judiciário e de cerceamento do direito de informar da imprensa são tentativas, a meu ver, de redução do regime democrático no país.
É preciso lembrar que o controle externo da magistratura e a falta de teto para indenização por danos morais em relação à imprensa eliminam, em grande parte, a independência e a liberdade fundamentais para o exercício da vigilância que os dois sustentáculos da democracia devem manter.
Estou convencido de que, se passarem os dois projetos, dificilmente teremos uma democracia real no Brasil, pois as coações da ameaça de denunciar magistrados perante o órgão de controle externo e de ações milionárias contra a imprensa poderão influenciar muitos dos defensores da justiça e da ética na política.
Mais do que nunca, entendo que caberia à sociedade lutar contra os dois projetos, para a preservação de sua cidadania. Ao Judiciário caberia examinar, cada vez com maior profundidade, as questões sobre danos morais -inclusive pelo princípio da razoabilidade e da proporcionalidade-, para evitar que a ação para a sua reparação se transforme em aventura sem ônus para os que a propõem e desestimular o enriquecimento ilícito daqueles para quem a honra tem preço, admitindo-a só em casos evidentes de dano moral.
Finalmente, à imprensa caberia deflagrar luta cada vez mais intensa para detectar as razões que estão levando a esse cerceamento das liberdades democráticas, para que o país não tenha o Poder Judiciário, que é um poder técnico, controlado pelos Poderes políticos e a imprensa controlada pela indústria dos danos morais.

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