São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Tribunal de clérigos

IDA LEWKOVICZ

O padre Manuel Jácome, após servir por muitos anos o bispo Azeredo Coutinho, no Brasil e em Portugal, assumiu a matriz de Cimbres, Pernambuco, no ano de 1812. Nesse local começaram seus problemas. Primeiro foi acusado de instigar os índios -não esquecidos da idéia de que toda a América deveria ser sua- a invadirem as plantações dos "principais da terra"; depois, de acobertar noivos envolvidos em um caso de rapto até a partida do visitador, para em seguida casá-los; proceder ao casamento de uma ex-concubina com um mameluco e tornar impossível a consumação do casamento; viver amancebado com uma mulata; deflorar diversas índias; fazer festas em sua casa "com música de violas, tambor e rebecas", com índias moças, danças e bebidas.
Esse é um dos casos, talvez o mais exemplar dentre as centenas encontrados pelo historiador Guilherme Pereira das Neves e apresentados em "E Receberá Mercê", seu estudo acerca da Mesa de Consciência e Ordens, um tribunal criado em 1532 em Portugal e que se estabeleceria no Rio de Janeiro em 1808 com a instalação da Corte portuguesa na cidade. Atuou por 20 anos no Brasil e produziu grande massa documental, minuciosamente analisada por Neves.
"E Receberá Mercê" inscreve-se entre as obras mais recentes que tratam da história eclesiástica e fogem ao espírito com que o corpo interno da igreja elaborou sua história. Esse espírito gerou trabalhos meritórios, que, contudo, preocuparam-se principalmente com as personalidades de bispos e outros altos dirigentes da igreja. Desde os livros de José Ferreira Carrato, muitos dos estudos dedicados à igreja, com prismas diversos, passaram a pensar nos coadjuvantes dessa história e não mais somente nos protagonistas, trazendo à baila as vicissitudes cotidianas dos clérigos. É preciso lembrar que grande parte da vida das populações decorria em torno dos párocos, constituídos em agentes que controlavam e registravam os fatos básicos da vida: nascimentos, matrimônios e mortes.
Neves percorreu todos os caminhos possíveis, procurando exaurir muitos temas que envolveram a igreja no período apontado, como, por exemplo, o regalismo e o antilusitanismo. Assim, oferece-nos inicialmente a história e a descrição de uma máquina burocrática em números e fatos. A igreja aparece também por intermédio da instabilidade da vida e das dificuldades pecuniárias dos párocos esparramados pelo vasto território brasileiro. A complexidade dos procedimentos da Mesa e as políticas interna e locais são uma constante nos seis capítulos do livro, para demonstrar essa trama como parte do início da formação do nacional, apresentada como uma força "atrelada à Coroa Imperial", "à maneira do Antigo Regime". As lutas pela sobrevivência material dos párocos, que aparecem nas disputas por colocações, permitem compreender como se configuravam as estratégias internas da igreja, que podem ser estendidas a outras esferas da vida nos estertores do Antigo Regime.
É particularmente esclarecedor o item "A Dança dos Provimentos", que faz parte do terceiro capítulo, em que aparecem os procedimentos para ocupação dos cargos eclesiásticos. Os concursos, as disputas por localidades melhores, as rivalidades entre candidatos, as discrepâncias entre as recomendações de bispos e as ordens régias, as discordâncias entre membros da Mesa são trazidos à mostra em casos como o do humilde pároco João Bernardes Vieira, isolado em uma pequena localidade montanhosa do rio Doce, com cerca de 1.500 habitantes -entre eles, alguns índios- e ainda sofrendo ataques dos botocudos.
O infeliz vigário, por volta de 1820, pediu para ser colado; porém, para ver atendida sua solicitação, a Mesa exigiu que se submetesse a exames junto ao bispo de Mariana. Como ele demonstrou a impossibilidade de abandonar sua paróquia e percorrer a distância até a sede do bispado, a Mesa permitiu que os exames se realizassem próximos à sua igreja. Nesse meio tempo o bispo abriu concurso para as freguesias vagas, incluindo a de Vieira, que não compareceu. O prelado, com os resultados das provas, indicou outro religioso para o lugar, fazendo Vieira em desespero de causa viajar, inutilmente, cerca de 700 km até a Corte para tentar salvar a situação.
Se o grande número de casos relatados revelou, sem dúvida, documentos interessantes e saborosos, a sua amplitude inventarial por vezes impediu o historiador de aprofundar interpretações mais independentes, tornando suas explicações atreladas a autores como P. Burke, C. Ginsburg e P. Bourdieu, aos quais recorreu nas conclusões de cada capítulo, embora tivessem estudado momentos e situações diferentes.
Essas análises mais argutas, entretanto, não deixam de surgir quando Neves cruza as informações documentais com a bibliografia pertinente de que fez uso. Desse modo, a crítica que se pode fazer a Neves está no excesso de transcrições de documentos, o que acaba por truncar a narrativa e cansar o leitor. O próprio autor percebe esse problema, já que constantemente procura justificativas para a apresentação de tão grande número de casos sucessivos, argumentando que pretendeu com isso mostrar as principais questões que afligiam o clero nas décadas iniciais do século 19 e também os mecanismos usados pela igreja para pôr em ação seu considerável número de funcionários e fazer mover a sua máquina.
A edição poderia ser mais cuidada, evitando-se assim diversos erros tipográficos -até mesmo nomes de autores bastante conhecidos no âmbito da história eclesiástica, como é o caso de Arlindo Rupert. O mérito do livro, entretanto, é incontestável. A apresentação ordenada de uma fonte tão rica e não estudada até hoje revela que muito está por fazer nos arquivos existentes no Brasil, e particularmente no Arquivo Nacional, por pesquisadores entusiasmados, dotados de agudeza de espírito e pacienciosos como Guilherme Pereira das Neves.

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