São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Os cabelos de Leda

LORENZO MAMMÌ

Um dos desenhos mais famosos de Michelangelo, presente na exposição do Masp e reproduzido na capa do catálogo, é um estudo preparatório para a tela "Leda e o Cisne". Representa uma cabeça de mulher inclinada para frente, que olha para baixo; o cabelo está preso num pano. Como era normal na época, Michelangelo usava modelos masculinos para esboçar figuras femininas. É provável, portanto, que tivesse deixado a definição do cabelo para mais tarde. De fato, embora o quadro esteja perdido, possuímos muitas cópias antigas dele, e todas mostram Leda com penteado elaborado, às vezes complementado por jóias. Em todas essas versões, porém, o cabelo, preso em tranças aderentes à cabeça, forma uma calota compacta, que retoma, em suas linhas gerais, a forma do esboço original.
Tentar adivinhar o penteado de Leda parece um típico divertimento erudito, mas na verdade diz respeito a algo que é fundamental na arte de Michelangelo. O cabelo é o elemento mais inerte, mais descontrolado da figura humana. O movimento dos fios não depende da nossa vontade. Pela mesma razão, o cabelo é também o elemento mais natural, o mais meramente vegetativo. Leonardo, quando pinta ou desenha fios de cabelo, os representa soltos, imbuídos de luz. Quase os confunde, amiúde, com a vegetação do fundo, como no retrato de Ginevra Benci. Acredita numa natureza onicompreensiva, que abriga em si, sem fraturas, o ar, a água, os seres vivos, as construções, as pedras. Busca a continuidade entre as coisas e, nesse sentido, os cabelos representam um importante elemento de transição entre o ser humano e o ambiente.
Michelangelo, ao contrário, está interessado justamente naquilo que diferencia o homem do resto da criação: a capacidade de decisão, o livre-arbítrio. Para ele, o corpo não é um mecanismo natural válido em si, mas um instrumento da alma. Por isso os cabelos, em todas suas obras, acompanham o movimento da cabeça com a maior fidelidade possível.
No esboço de Leda, o pano que envolve a cabeça não é, evidentemente, apenas uma expediente para deixar em aberto uma questão a ser resolvida mais tarde: o desenho mostra traços semiapagados de várias tentativas do autor, antes de encontrar o perfil exato desse detalhe. A solução finalmente escolhida é perfeitamente funcional: a curva do pano desenvolve a inclinação do pescoço e a curva da nuca, conferindo-lhe um impulso adicional, que se descarrega na dobra frontal. A testa serena de Leda torna-se decidida e "heróica" justamente por causa dessa dobra que a sobranceia, e na qual convergem todas as linhas de força do desenho. Para se convencer da importância expressiva da curvatura do pano, é suficiente cobri-lo com a mão: a expressão da cabeça torna-se imediatamente mais doce, mais dócil.
As cópias remanescentes da tela perdida (uma delas reproduzida no catálogo, na pág. 52) mostram qual era a idéia geral do trabalho. Destinado aos aposentos do duque de Ferrara, Alfonso 1º d'Este, o quadro é marcado por um erotismo ambíguo e levemente mórbido, típico de muitas obras do maneirismo. Os corpos entrelaçados da mulher e do cisne ocupam o espaço inteiro da figuração, formando uma única linha sinuosa. Leda envolve a ave com pernas e braços, e o beija no bico -mais do que uma mulher seduzida, parece uma mulher que seduz. Os corpos, soldados um ao outro e isolados de qualquer ambiente ou fundo natural, adquirem a evidência de um friso escultórico ou, melhor ainda, de um elemento arquitetônico. Relacionada ao conjunto, a curva do pano que cobre o cabelo de Leda adquire uma função ainda mais importante: ela não resolve apenas o movimento local; ao contrário, é a figuração inteira, semelhante a uma grande onda, que se afunila e se descarrega aqui, como uma voluta de mármore se descarrega e se esgota no caracol terminal.
Michelangelo afirmava querer "desenhar esculpindo". Na verdade, sua arquitetura também é escultura. Embora seja considerado universalmente um dos maiores arquitetos da história, o artista nunca construiu um edifício partindo de zero; sempre interveio sobre estruturas preexistentes, conferindo a elas novo sentido, mediante o acréscimo ou a modificação de alguns elementos. Essas intervenções podiam ser grandiosas, como a cúpula superposta à igreja de São Pedro projetada por Bramante, ou discretas, como as janelas "ajoelhadas" do Palácio Medici, em Florença. Em todo caso, esses elementos acabavam caracterizando e requalificando o ambiente, da mesma maneira como uma estátua caracteriza o espaço de uma praça ou de um edifício. Por isso, apesar do ecletismo de suas atividades, Michelangelo sempre se considerou essencialmente um escultor, e sempre assinou suas cartas como "Michelangelo schultore".
Dois desenhos de edificações militares (nºs 35 e 36 do catálogo), destinados às fortificações de Florença, demonstram quanto a auto-avaliação do artista era correta. Nessa época, o desenvolvimento das armas de fogo estava revolucionando a arquitetura militar. Eram necessárias paredes mais grossas e mais inclinadas, que aguentassem os golpes da artilharia. Já que o estrago das balas dependia do ângulo de impacto, procurava-se oferecer ao inimigo o menor número possível de superfícies planas e frontais. Por outro lado, a arquitetura militar não era apenas uma questão técnica: as muralhas eram a primeira imagem que uma cidade oferecia de si mesma -a funcionalidade devia conciliar-se com o significado simbólico.
Em seus projetos de fortificação, Leonardo resolvera o problema privilegiando as superfícies arredondadas, acompanhando, na medida do possível, as curvas da paisagem. As fortificações de Michelangelo, ao contrário, tomam a iniciativa, projetando seus bastiões para frente, por ângulos agudos ou curvas de perfil caprichoso. Suas obras militares -que, como as de Leonardo, nunca foram realizadas- parecem pinças de um enorme caranguejo, fauces prestes a engolir o agressor. São linhas tensas como músculos, tensas como o pano na cabeça de Leda. De novo, ao abordar a relação entre homem e natureza, Leonardo busca a mimese, Michelangelo, o domínio. Nem é preciso que a função seja militar: o projeto da "pequena biblioteca laurentiana" (nº 30 do catálogo) possui a mesma articulação nervosa, como uma tenaz.
E, já que para Michelangelo não há diferença entre arquitetura e escultura, podemos reencontrar a mesma articulação no desenho anatômico exposto na mostra (nº 28 do catálogo). Mais uma vez, a abordagem de Michelangelo é oposta à de Leonardo, que é sem dúvida o maior anatomista do Renascimento. Para Leonardo, o corpo humano é um conjunto de tecidos e fluidos. Interessam-lhe os canais pelos quais a força vital se transmite: veias, nervos, medulas. A vida circula em seus esboços como a linfa numa árvore; e, de fato, não há diferença substancial, para ele, entre vida de árvore e vida de um corpo animado. Michelangelo elimina todos esses detalhes. Para ele, a vida é presença da alma, e a alma não é algo que possa ser demonstrado por um estudo de naturalista; o corpo humano é, substancialmente, um sistema de levas, que a alma põe em movimento. Por isso, contra o traço sutilmente matizado de Leonardo, que diferencia cada tecido, Michelangelo utiliza linhas duras, esculpidas, evidenciando a direção das fibras musculares. Os joelhos desse desenho, em particular, com suas saliências pedregosas, são de uma vitalidade impressionante.
Há outras obras-primas na exposição do Masp: o estudo de um Cristo ressuscitado, em que o artista experimenta vários graus de rotação do corpo; um "Sacrifício de Isaac", de atribuição incerta, mas de altíssima qualidade; um esboço para a "Expulsão do Paraíso", que a pesquisadora italiana Paola Barrochi julga com razão ainda mais feliz do que a versão final realizada na Capela Sistina. Outros papéis, representando detalhes arquitetônicos (no catálogo, nº 24, 27, 31, 32 etc.), são primorosos, mas não igualmente geniais. Trata-se de "modelos", desenhos traçados para ser submetidos ao cliente, e não para lembrete pessoal do artista. Seu caráter, portanto, é mais técnico e anódino.
A mostra, no entanto, não é exatamente uma exposição de Michelangelo: dos 58 itens do catálogo, apenas 20 são de mão do artista -e um deles, o esboço em cera de um deus fluvial, não foi incluído na exibição. O resto ilustra outros aspectos do acervo da Casa Buonarroti, um palacete florentino que foi propriedade da família do artista até meados do século passado, quando se transformou em museu. Além de algumas magistrais esculturas juvenis de Michelangelo -entre elas a "Madona da Escada", da qual o Masp mostra uma cópia antiga em bronze- e uma importantíssima coleção de desenhos, a Casa Buonarroti hospeda atualmente retratos de família, gravuras, obras de artistas relacionados de alguma maneira com Michelangelo ou seus descendentes.
O interesse desse material é, na maioria das vezes, apenas documentário. Em alguns casos, as peças não têm relação alguma com o grande artista, como é o caso da coleção de antiguidades etruscas recolhidas no século 18 pelo antiquário Filippo Buonarroti -coleção que, a julgar pela peças incluídas nessa exposição, é de qualidade mediana. A presença desse material incha o catálogo e a exposição do Masp um pouco além do que seria saudável, mas não chega a prejudicar a mostra: mesmo deixando de lado todos os itens não relacionados diretamente ao artista; mesmo descontando os autógrafos de Michelangelo que não possuem interesse estético imediato (uma carta, uma anotação sobre uma partida de blocos de mármore); mesmo pondo em segundo plano os desenhos mais impessoais dos "modelos" -mesmo assim, sobra uma dezena de trabalhos emocionantes.
Em todo caso, acho importante avançar algumas reservas, sobretudo à luz das polêmicas geradas pela exposição de Monet. Ao fazê-las, preciso que estou escrevendo antes da inauguração, e ainda não sei exatamente qual será o perfil escolhido pelos organizadores. A primeira observação é que a mostra da casa Buonarroti, ainda mais do que a de Monet, não se presta a um tratamento de megaexposição. Ela é pequena demais, e pode ficar sufocada por uma quermesse excessiva.
A segunda observação é que a exposição, além de pequena, demanda certo grau de especialização. Para compreender plenamente esses desenhos, é necessário contextualizá-los, relacionando-os com as obras em vista das quais foram realizados. O catálogo é muito bem documentado e repleto de ótimas reproduções em branco e preto, mas confere o mesmo relevo a todos os itens, sejam eles desenhos, autógrafos ou objetos absolutamente secundários. Um especialista, é claro, corrige automaticamente essa falta de hierarquia. Mas é necessário desfazer a ilusão de que essa mostra possa proporcionar a grandes massas um primeiro contato plenamente satisfatório com a obra do artista.
É claro que não há nada de mal em exposições especializadas, assim como não há nada de mal em exposições destinadas ao grande público. O importante é que a confecção corresponda ao conteúdo. Caso contrário, existem dois perigos: um é o da desilusão, quando o público encontra, atrás da barreira da mídia, uma obra de aparência modesta, que não foi preparado a apreciar; o outro, complementar a esse, é o do fetichismo, que leva a endeusar o artista previamente, independentemente de um contato real com a obra -e, normalmente, pelas razões erradas.
Por exemplo: todo desenho renascentista proporciona uma sensação de harmonia e de relação equilibrada com o espaço, se comparado com a arte barroca ou, ainda mais, com a moderna. Michelangelo, no entanto, é exatamente o contrário disso: é o artista que quebra a harmonia e o equilíbrio. Quase todos os corpos que pinta, esculpe ou desenha são representados em posições inaturais, ainda que tais posições pareçam possíveis por força do virtuosismo com que são realizadas. Se o público, portanto, sair da exposição com a impressão de que Michelangelo foi um grande desenhista, no sentido de uma correspondência não problemática entre obra e modelo, terá recebido uma informação incompleta e imperfeita.
Michelangelo, obviamente, desenha maravilhosamente bem, e desenha a partir de modelos, mas o importante é a maneira com que consegue dobrar os dados sensíveis à representação de algo que não existe na realidade (nem na realidade idealizada dos artistas do Renascimento), e que passou a existir a partir de sua obra. Para ele, o desenho nunca foi um fim em si mesmo, nem uma maneira de apreensão da realidade: desenhar, ao contrário, significava por um lado receber uma inspiração, intuir instantaneamente uma articulação de volumes que era também um movimento da alma; por outro lado, significava traçar um projeto, que deveria ser verificado em sua realização prática e em sua interação com outros projetos parciais, até chegar à corporificação perfeita daquele movimento psicológico inicial -e não importava que essa corporificação fosse uma pintura, uma escultura, um edifício, uma muralha, uma praça.
Pouco antes de morrer, Michelangelo queimou uma grande quantidade de desenhos e cartões, porque julgava que apenas as obras perfeitas devessem sobreviver a ele, e não as provas dos esforços necessários para realizá-las. Após a morte do artista, no entanto, seus esboços tornaram-se objeto de colecionismo apaixonado. O próprio biógrafo do artista, Giorgio Vasari, que relata o episódio (e cujo comentário é citado no catálogo, na pág. 35), possuía uma coleção extremamente valiosa de desenhos de vários artistas.
Entre a geração de Michelangelo e a de Vasari correm menos de 40 anos, mas nesse arco de tempo verificou-se uma mudança radical de perspectiva: a figura do artista tornou-se tão importante quanto a obra; as diferentes fases da criação assumiram a mesma relevância estética do produto realizado. Essa reviravolta deve-se em parte ao próprio culto tributado à personalidade de Michelangelo, considerada quase divina, e portanto perfeita em todas suas expressões. O próprio Michelangelo, no entanto, se realmente queimou seus papéis, não parece ter compartilhado o mesmo ponto de vista.
Hoje, enxergamos esses desenhos com os olhos de Vasari, mais do que com os olhos de seu autor: tentamos adivinhar a primeira intuição e descobrir o momento em que a intuição se transforma em projeto. Encontramos nisso uma chave de compreensão para as obras maiores, mas também um prazer estético em si. Mistura-se a ele algo que, isso sim, Michelangelo introduziu conscientemente na cultura ocidental: o fascínio do inacabado. Em todo caso, não é um prazer imediatamente intuitivo, a não ser por seus aspectos mais imediatamente sensuais e, no fundo, menos característicos. Em alguns desses desenhos podemos ver um gênio pensar. Mas ler no pensamento de um gênio é uma tarefa complicada.

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