São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Uma vida de militância

JACOB GORENDER

O passado pode ser apenas passado. Alguma coisa que teve conclusão perfeita. Passou, e com ela nada tem a ver o presente, muito menos o futuro. Mas pode ser processo inconcluso, que se prolonga e se insere no presente e promete ter futuro.
A leitura da narrativa autobiográfica de Apolonio de Carvalho suscita estes enfoques diferentes do fluxo do tempo histórico. Para os que acreditam que, de fato, a esquerda acabou, ao menos na acepção tradicional, como tanto se ouve e se lê nos dias atuais, impõe-se a primeira maneira de ver. Se o enfoque for oposto, podem optar pela segunda. Em qualquer caso, para os crentes e para os céticos, esta autobiografia será extremamente interessante.
A perspectiva do próprio autor é a de que o futuro compensará as perdas e os sacrifícios resultantes de derrotas tão repetidas. Ao menos, vale a pena sonhar.
Do alto dos 85 anos intensamente vividos, os 60 e tantos anos de atividade política de Apolonio de Carvalho se identificam com dois terços de século da trajetória da esquerda comunista brasileira e européia. Conspirador, prisioneiro político, combatente na linha de frente da guerra e da luta armada clandestina em solo estrangeiro, de novo conspirador, agarrado pela repressão policial e submetido aos horrores da tortura no seu país tropical -o curso da existência o tornou figura notável da esquerda brasileira e latino-americana.
No entanto, sem ser um desconhecido, Apolonio não teve até agora o relevo que lhe caberia pelos méritos próprios. Contribuiu ele mesmo para isto por sua contenção, pelo comportamento discreto e por se esquivar à disputa de cargos ou lideranças. Mesmo neste seu primeiro livro, sempre que suspeita estar incorrendo em auto-elogio, desliza ingenuamente do singular para o plural da primeira pessoa. O que não chega a prejudicar a transparência e a correção da escrita, valorizada pelo prefaciador Antonio Candido.
A apreciação da narrativa em sua plenitude exige, a rigor, conhecimentos de história política. São cenários sucessivos muito variados e o autor não dispôs de tempo e espaço para circunstanciá-los de maneira a instruir devidamente o leitor. Mas a informação é suficiente para fornecer orientação e permitir a cada um puxar o fio da meada. Sob este aspecto, foi feliz a iniciativa de colocar ao final do texto uma cronologia minuciosa que entremeia os fatos pessoais com os fatos de amplitude social e histórica. Acrescente-se a iconografia, que amplia a percepção literária.
Nascido às vésperas da Primeira Guerra Mundial, em Corumbá, no hoje Mato Grosso do Sul, filho de um oficial do Exército que participou do ato da proclamação da República, Apolonio de Carvalho dedica os dois primeiros capítulos à recordação dos anos de formação na família e na escola de cadetes. No ambiente familiar, sobretudo sob a forte influência paterna, e na escola, adquire o "ethos" que se imporá inflexivelmente em todos os passos futuros. O relato transmite, com humor, o que podia ser a educação de um menino e adolescente na então remotíssima fronteira ocidental do nosso país. Surpreende que as diferenças não fossem tão grandes com relação ao que ocorria em outras regiões bem mais refinadas. Como no Rio ou em Salvador, os jovens de Corumbá perpetravam sonetos românticos finalizados com chaves de ouro, e Apolonio não se furta de nos brindar com um exemplar de sua lavra.
Na escola militar de Realengo, o ambiente de início dos anos 30 favorecia a politização dos alunos mais inclinados a influências doutrinárias. A narrativa pode servir de subsídio documental para o estudo da história militar brasileira, na medida em que capta um momento de conflito de tendências no seio da instituição castrense. É na escola militar que Apolonio toma contato inicial com a literatura marxista e anarco-sindicalista, cuja circulação era razoavelmente desembaraçada dentro dela. A partir daí, os rumos pessoais estão delineados e o que vai acontecer dependerá de fatores impessoais.
No posto de oficial de uma unidade do Exército em Bagé, Apolonio adere à agitação dos tenentes, frustrados pelos rumos do governo de Getúlio Vargas, nos primeiros anos da década de 30. A ala mais radical do tenentismo se alia aos comunistas, deslocamento catalisado por Luiz Carlos Prestes e que vai desembocar na criação da Aliança Nacional Libertadora. O jovem oficial se engaja na agitação e se surpreenderá com o fechamento da ANL, após quatro escassos meses de legalidade. Os fracassados levantes aliancistas no Nordeste e no Rio de Janeiro, em novembro de 1935, desencadeiam dura repressão e Apolonio sofre uma primeira prisão. De sua passagem pela penitenciária da rua Frei Caneca, no Rio de Janeiro, o livro reproduz ambiente e cenas já conhecidos através das "Memórias do Cárcere", de Graciliano Ramos. Vários personagens aparecem em ambas as obras, como é o caso de Olga Benário Prestes e de José Gutman, sambista nas horas vagas.
Libertado em 1937 e já membro do partido comunista, Apolonio viaja para a Espanha a fim de participar da defesa da causa democrática contra o golpe fascista liderado pelo general Franco. Será, então, um dos milhares de voluntários que, de numerosos países, acorrem ao solo ibérico. Colocará os conhecimentos de oficial de artilharia a serviço do exército republicano e viverá a tragédia da divisão das esquerdas e da derrota, seguida pela retirada de centenas de milhares de refugiados em direção à França.
Dos voluntários brasileiros, foi o único que, em vez de voltar ao Brasil, decide permanecer na França, já envolvida na Segunda Guerra Mundial. Esta opção o coloca de novo no olho do furacão. Do entrosamento com a resistência ao invasor nazista surge o encontro com Renée, sua companheira de mais de 50 anos e colaboradora da obra. Coronel da resistência, comandou os guerrilheiros da região de Marselha e se destacou pelos feitos militares, que lhe valeram condecorações e honrarias do governo francês (o que o livro omite).
De regresso ao Brasil, dedica-se integralmente à militância no partido comunista. O relato autobiográfico descreve uma sucessão de episódios políticos, dentre os quais se destacam o golpe militar de 1964, a luta armada das esquerdas, a fundação e o desmantelamento do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Diversos personagens, como Marighella, Mário Alves e Câmara Ferreira, desfilam pela narrativa. Preso em 1970 e submetido à tortura no DOI-Codi do Rio de Janeiro, Apolonio foi libertado com a inclusão no grupo de prisioneiros políticos trocados pelo resgate do embaixador alemão sequestrado por guerrilheiros. Após dez anos de exílio, de retorno ao Brasil, vive nova etapa de atividade política como fundador e dirigente do PT.
Necessário ao equilíbrio da vida psíquica dos indivíduos, o sonho também é indispensável à saúde política do revolucionário dedicado a um ideal utópico. No caso de Apolonio de Carvalho, o sonho nunca foi escapismo, pois se traduziu sempre em ações concretas.

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