São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Montagem de Bia Lessa redescobre o real

ALVARO MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Definitivamente, grandes desafios são o motor da carreira de direção da pequena (em estatura, 1,49 m) Bia Lessa.
Responsável por adaptações no mínimo instigantes de clássicos, que pareciam intransponíveis para o palco -como "Orlando", de Virginia Woolf, ou "Viagem ao Centro da Terra", de Júlio Verne-, e agora saudada como diretora de cinema de fôlego glauberiano -com "Crede Mi", em cartaz em São Paulo-, Lessa mostra, a partir do próximo dia 15, no Teatro Municipal do Rio, sua terceira incursão no terreno da ópera -e em dose dupla.
Com "Cavalleria Rusticana" e "I Pagliacci" -obras respectivamente de Pietro Mascagni e Ruggiero Leoncavallo, estreadas na Itália entre 1890 e 1892 e tradicionalmente encenadas juntas-, a diretora quer ampliar as experiências anteriores de uma "Suor Angelica" (Puccini) que resultou moderna, porém grandiosa.
Grandiosa a ponto de entusiasmar uma conservadora clientela de ópera italiana (em São Paulo, 1990 e no Rio, 1995), e de um "Don Giovanni" de Mozart inusitadamente elaborado no Ceará (Fortaleza, 1992, com repetições em São Paulo, no mesmo ano).
As óperas de Mascagni e Leoncavallo "conspiram" com o momento vivido pela diretora. De um lado, há o realismo pretendido pela música e pelos libretos, alinhados à escola artística do final do século 19, intitulada "verismo", segundo a qual o feio e o vulgar tomam parte na tessitura da verdade e possuem valor estético.
E da parte de Bia Lessa há o processo de uma intensa "redescoberta do real", o exame da "matéria-prima humana bruta" e a exposição de sua poesia intocada, a confrontação direta com "o autêntico popular, que se revela denso e sofisticado".
"É como passar a tirar laranjas do pé em vez de comprá-las no supermercado", explica a diretora sobre sua atual fase, já exercitada em "Crede Mi" e aprofundada com "Brasil" (título provisório de seu novo filme, que está sendo rodado em várias regiões do país).
Excelentes pretextos
Coincidência ou destino, nas óperas propostas pelo Municipal carioca, Bia Lessa pôde encontrar excelentes pretextos para dar continuidade à investigação atual, já que as obras trazem, em primeiro plano ou como fundo, as irrupções do popular e suas paixões, os contrastes "campo/cidade" e "pobres/ricos", a violência do "mundo real", a rusticidade das regiões italianas da Sicília ("Cavalleria") e Calábria ("I Pagliacci").
"Para mim, o crime hediondo de 'Pagliacci' não se encontra distante das carnificinas da Candelária e do Carandiru, ou na crueza do assassinato de Daniella Perez."
A cenografia, que conta com a colaboração do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e os figurinos de Cica Modesto, que em conjunto reproduzem às vezes pinturas campestres de Van Gogh, são aliados na tentativa de comunicar a vitalidade das crenças e costumes populares em "Cavalleria" ou a insidiosa penetração do real na arena circense, em "Pagliacci".
Mas exibir essas realidades no ambiente de extrema artificialidade da cena operística e extrair verdade da movimentação e interpretação dos cantores e figurantes constitui o desafio maior para a diretora.
Pouco tempo
Porém, com o pouco tempo de preparação das óperas -menos de dois meses- e as limitações de disponibilidade do coro, essa contribuição tornou-se parcial, com a cessão da mais antiga assistente de Bertazzo, Marília Araújo, que como Lessa e outros dois assistentes, trabalha em tempo integral sobre as marcações dos intérpretes.
Na prática, em algumas ocasiões dos ensaios, o "verismo" da cena lírica parece prestes a se tornar verdadeira batalha campal na sala de 150 m2 onde coro, figurantes e diretora têm se apertado.
Apesar do entusiasmo evidente dos cantores com o repertório italiano, a indisciplina -"Silêncio!", repete a diretora, como numa sala de ginásio- e a rígida fiscalização de horários de ensaios por parte de lideranças do coro provocam diálogos e cenas que parecem transpostas do filme "Ensaio de Orquestra", de Fellini.
Vale lembrar que as citações cinematográficas mais imediatas para "Cavalleria-Pagliacci" são bem diversas: "Os Intocáveis", de Brian de Palma (que encena a célebre ária "Vesti la Giubba", com o refrão "Ridi, Pagliaccio") e "O Poderoso Chefão - Parte 3", de Coppola (que mostra a procissão de Páscoa de "Cavalleria"), filmes que fortaleceram a noção de que as máfias italiana e norte-americana cultuam esses libretos de vingança passional tanto quanto o célebre silêncio profissional.
Trabalho triplicado
A "tourada" de Lessa com os rígidos esquemas do coral e o tempo exíguo têm redundado, para sua equipe e para a direção do Teatro Municipal do Rio, em trabalho triplicado em planejamento.
Ainda assim, a equipe de direção encontrou tempo para assistir a todas as apresentações de um dos acontecimentos artísticos do ano, a passagem da companhia de teatro-dança de Pina Bausch pelo Municipal do Rio.
"Foi um presente que recebi saborear agora suas montagens plenas de afetividade", diz Lessa, que, ao confidenciar suas tribulações para a coreógrafa durante um jantar de despedida, provou "sem intermediações" essa qualidade repousando por momentos sua cabeça no colo de uma suave e maternal Pina.

Óperas: Cavalleria Rusticana e I Pagliacci
Autores: Pietro Mascagni e Ruggiero Leoncavallo
Direção cênica: Bia Lessa
Onde: Teatro Municipal de Rio de Janeiro (praça Floriano, s/nº, Centro, tel. 021/297-4441, Rio)
Quando: dias 15, 18 e 23 de setembro, às 20h; dia 21 (domingo), às 17h
Quanto: de R$ 10 (galeria) a R$ 75,00 (platéia)

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