São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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Os princípios do poder de Sheherazade

LUIZA NAGIB ELUF
ESPECIAL PARA A FOLHA

Depois da Bíblia, o livro mais publicado e de maior divulgação no mundo são os contos árabes "As Mil e Uma Noites". Sabe-se que, originariamente, os contos derivam de lendas consagradas nas tradições orais da Índia, Pérsia, Egito e China, constituindo uma obra volumosa da qual existem várias versões -manuscritos, edições e traduções-, nenhuma delas inteiramente coincidente.
Se no tocante à sua origem há várias possibilidades e a polêmica persiste entre os estudiosos, não resta nenhuma dúvida de que foram os árabes que primeiro redigiram a obra, dando às "Noites" sua língua, sua cultura e sua religião. Provavelmente a partir do século 8º, inicia-se o processo de arabização e consequente islamização do material estrangeiro, ao qual posteriormente foram acrescentadas histórias autóctones.
As "Noites" são vários contos dentro de outro conto, que poderia ser chamado de "conto moldura": o sultão Shariar, rei da China e da Índia, descobre que é traído pela sultana, sua mulher, com escravos negros do palácio. Desolado, é informado por seu irmão, Shahzaman, que também ele fora traído por sua esposa.
Saem, então, ambos a percorrer o mundo, procurando alguém mais infeliz do que eles. Chegam à beira do mar, onde vêem um gênio sair das ondas carregando um baú. Dele, o gênio retira uma jovem mulher, por ele raptada no dia de suas núpcias. O gênio adormece no colo da jovem. Ela, então, descobre os reis escondidos na folhagem de uma árvore e os obriga, sob ameaça de acordar o gênio, a descer e manter relações sexuais com ela. Depois, a moça pede a cada um o seu anel, a fim de completar a coleção de 570 anéis, obtidos de seus amantes, apesar da feroz vigilância do gênio.
Convencido de que não há meios de controlar a sexualidade das mulheres, que seriam infiéis por natureza, e tomado de ódio pelo gênero feminino, o sultão Shariar, que já havia matado a própria mulher e seu amante, decide desposar uma virgem a cada dia e, após a noite de núpcias, matá-la ao amanhecer.
Decorrido certo tempo, o povo do reino lamenta a trágica sorte a que está submetido, até que a filha do vizir, a culta Sheherazade, decide casar-se com o sultão para salvar as mulheres da fúria homicida que acometera o soberano. Moça de muita leitura e memória extraordinária, bem como de incomparável beleza, Sheherazade desafia o destino e, corajosamente, sujeita-se ao risco da morte confiando em sua própria sabedoria.
Consumado o casamento, durante a madrugada nupcial, a bela esposa inicia a narrativa de um conto e o interrompe ao raiar do dia, deixando curioso o sultão sobre o término da história. Concede-lhe ele mais um dia, e assim, sucessivamente, pois os contos de Sheherazade nunca chegam ao fim. A morte da sultana é constantemente postergada. Depois de mil e uma noites de histórias, Sheherazade é perdoada e a paz retorna ao reino.
São desses contos que surgiram "Ali Babá e os 40 Ladrões", "Simbad, o Marujo", "Aladim e a Lâmpada Maravilhosa", "O Tapete Mágico".
Se hoje assistimos, estarrecidos, ao recrudescimento do fundamentalismo islâmico, no qual a modernidade surge como ameaça geradora de enormes impasses, não nos podemos esquecer de que o Islã, em sua idade clássica, próximo ainda da revelação corânica, foi o máximo do requinte e da cultura progressista, em nada semelhante aos países muçulmanos de agora. "As Mil e Uma Noites" apresentam-se, assim, como um tesouro de mágicas seduções do mundo árabe, revestidas de um erotismo e um encantamento que sempre fascinam a cultura ocidental.
Numerosas foram as interpretações dadas às "Noites" e, até hoje, são elas objeto de estudo das várias áreas do conhecimento científico.
Recentemente, foi publicado no Brasil, pela Editora Imago, o livro "Jardim de Arabescos", de Daisy Wanjberg, psicanalista e mestre em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no qual a autora faz uma análise psicoliterária da obra.
Traçando um paralelo entre os métodos usados pela heroína Sheherazade na cura do sultão Shariar e a psicanálise, Daisy Wanjberg ressalta a função terapêutica da fala e do manejo do tempo.
Para o psicanalista Bruno Bettelheim, a história de Sheherazade teria o mérito "de mostrar que os contos de fada são capazes de melhorar radicalmente a vida do ouvinte". Daisy Wanjberg, contudo, vai mais além. Ela atribui a cura ao controle do tempo e ao desejo do analista, que busca o acesso do paciente ao próprio desejo.
Com base na posição de Sheherazade, ela demonstra que a chamada neutralidade da situação analítica não implica a supressão do desejo do analista. Nas palavras da autora, "isso seria inadmissível numa cura que visa chegar ao cerne do desejo inconsciente, conduzida por um analista cujo lugar resulta do seu próprio processo de análise. Assim, não é apenas o analisando aquele que paga numa análise. Também o analista paga caro para ocupar este lugar... nem tanto com suas palavras na interpretação, mas sobretudo com seu próprio corpo oferecido como suporte transferencial".
"Jardim de Arabescos" é um livro interessante e inovador. Neste sentido, poderia ter sido ainda mais completo se contivesse um estudo das relações de gênero espelhadas nos contos. Toda a trama das "Noites" desenvolve-se com base no relacionamento homem-mulher, colocado em segundo plano pela autora, que se fixou no aspecto paciente-analista. É claro que este era exatamente seu intento, no qual foi bem-sucedida.
A abordagem que ela faz da questão analítica é bastante ampla e útil aos profissionais da área. Mas até hoje, na maioria dos países islâmicos da Ásia e da África, as mulheres são extremamente sacrificadas. Se não chegam a ser mortas após a noite de núpcias, são tragicamente castradas, já na infância, com a amputação do clitóris e dos lábios vaginais, a fim de que não sintam prazer no sexo e não queiram trair seus maridos. O princípio parece ser o mesmo do sultão Shariar, que pretende dominar o corpo e a mente das mulheres, à custa de muita violência.
A cura para este mal que acomete os homens islâmicos, de uma maneira geral, é algo que merece estudos profundos. Não houve, ainda, uma Sheherazade capaz de combatê-lo.

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