São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 1997
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"Os Matadores" é um filme universal e grandioso

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Não sou contra o sistema de "estrelinhas" ou de cotações (ruim/regular/bom etc.) que acompanha os roteiros de cinema nos jornais. Mas, como todo leitor, às vezes fico inconformado com a opinião dos críticos. Estão dando só duas estrelas para "Os Matadores", filme de Beto Brant em cartaz no Espaço Unibanco.
Achei "Os Matadores" um filme sensacional. Raras vezes, no cinema brasileiro ou em qualquer outro, podemos ver uma história tão bem construída, um desfecho tão lógico e surpreendente ao mesmo tempo. Aquilo não é um filme, é uma bomba-relógio.
Segue-se com brilho o ensinamento do escritor argentino Ricardo Piglia, que, em "A Oficina do Escritor" (ed. Iluminuras), fez esta descoberta interessantíssima: a de que todo conto bem-sucedido está, na verdade, contando duas histórias. Uma, aparente, linear, e outra, oculta, que só se revela no final.
A primeira história de "Os Matadores" apresenta as aventuras de Múcio, um pistoleiro paraguaio que faz serviços para um fazendeiro no Brasil. Os seus assassinatos são contados em "flashback" pelo comparsa mais velho. A segunda história diz respeito ao rapaz que ouve essas lembranças. O resultado é de uma elegância estética e de uma profundidade moral que andam muito raras no cinema hoje em dia.
Vemos a violência do campo brasileiro com todo seu absurdo e arbitrariedade. Mas, ao mesmo tempo, a narração é lógica, geométrica, exige raciocínio do espectador; apela para a frieza, não tanto para a indignação. Esse contraste é raro em muitas obras de arte modernas.
Explico um pouco. Muitas vezes, o modernismo (em cinema, teatro, literatura etc.) tende a "mimetizar", a imitar, a caricaturar aquilo que denuncia. Assim, se a vida moderna é caótica, trata-se de fazer também uma obra "caótica"; se a violência nas relações de trabalho no campo é a regra, façamos um filme que, denunciando essa violência, seja ele próprio violento, arbitrário.
A mímese, aqui, funciona como uma identificação com o agressor. Quantos poemas não imitam as técnicas da publicidade? Quantos críticos não explicam o modernismo pelo que tem de obediente aos "ritmos" da cidade grande? O culto da velocidade, da técnica, do imediato, do irrefletido, é ao mesmo tempo "moderno" e "modernista".
É como se a ironia moderna servisse de álibi para piorar, de propósito, o que já anda mal das pernas. Contra essa visão fácil da ironia, boa para os críticos e intérpretes, é possível dar exemplos de uma arte que se leva a sério, sem mímese "macaqueante" face ao opressor, sutil o bastante para não apontar a própria ironia com gestos de circo.
"Os Matadores" pertence a essa categoria superior de arte, de um modo que mesmo Hitchcock, se descuidarmos um pouco do formalismo, é incapaz de ser, e de um modo que "Pulp Fiction", de Quentin Tarantino, apesar do extremo engenho de enredo e de seu humorismo, não aspira a ser. "Os Matadores" é antiparódico, é sério e moderno ao mesmo tempo.
Meu objetivo, entretanto, não era falar de "Os Matadores", coisa que só seria possível se eu contasse a história do filme, e sim da voga de filmes nordestinos atualmente em cartaz.
Temos "Baile Perfumado", de Paulo Caldas e Lírio Ferreira; "Crede Mi", de Bia Lessa; vem aí "Canudos", de Sérgio Rezende; e já passou "O Sertão das Memórias", de José Araújo.
A que se deve essa voga de filmes sobre o sertão? A meu ver, recupera-se aqui a memória do cinema nacional, depois de um período de estagnação. Não é à toa que o sertão de "Baile Perfumado" aparece verdejante, nada decadente, na tela do Unibanco. Celebra-se uma renascença.
Por muito tempo, o Nordeste foi a região-problema do país. Ainda é. Mas deixou, de certa maneira, de ser o foco dos conflitos sociais (veja-se o Pontal do Paranapanema), para transformar-se numa espécie de reserva do imaginário arcaico frente às ameaças de modernização.
O tema da modernização, mais do que a denúncia, é o que mobiliza os filmes citados acima. Em "Baile Perfumado", vemos o conflito entre um cineasta aventureiro, uma espécie de paparazzo, chamado Benjamin Abraão, e as forças do Estado Novo.
Esse Benjamin Abraão, personagem real, foi o primeiro a registrar imagens de Lampião e de seu bando, nos idos de 30. Envolveu-se numa verdadeira guerra para conseguir o que queria.
Narram-se, no filme, as dificuldades clássicas do cinema nacional em conseguir financiamento, faz-se uma pré-história da censura e, o que é mais importante, registram-se as consequências da modernidade sobre o sertão. Lampião só quer saber de uísque importado e perfume francês. Benjamin Abraão, querendo filmar o cangaceiro, é símbolo do encontro entre o moderno e o arcaico. Seu filme glorifica Lampião; mas o cineasta, em sua busca, dá pistas para que o governo termine encontrando o esconderijo do bandido, trucidando-o.
"Baile Perfumado" narra esse encontro ambíguo entre modernidade e banditismo, as ambiguidades entre a glorificação e a crítica "modernas" do arcaico e do anticapitalista. Mas a cena final, delirante, de um Lampião redivivo e imponente, vigoroso nos altos de um despenhadeiro, como um videoclipe, denuncia uma certa ingenuidade dos diretores.
É como se dissessem: "a modernidade venceu, mas o mito é mais forte". Lampião, vencedor, o cineasta Abraão, derrotado: não há nisso uma apologia modernista do nordeste antimoderno?
"Canudos", de Sérgio Rezende, é outra história. Escolheu-se o grande épico da "modernização" republicana. Claro que, hoje, não pensamos como os intelectuais "avançados" de 1890. Sabemos, como Euclides da Cunha já sabia, que aquilo foi um crime, um massacre, não um episódio modernizante. Essa é, naturalmente, a perspectiva de Sérgio Rezende.
Mas o problema é que ele quis fazer um filme "moderno". Formalmente, "Canudos" está do lado das tropas que massacram os fanáticos de Conselheiro. Por mais que o filme mostre a intolerância fanática do governo republicano e positivista, não se consegue assumir o ponto de vista dos massacrados. A figura de Conselheiro, vivida por José Wilker, sofre então de uma artificialidade, de uma incompreensibilidade, de um ridículo total.
O filme hesita entre a obrigação de ser mercadologicamente bom, "moderno", e a necessidade de assumir o ponto de vista dos massacrados "arcaicos", sertanejos, pobres. Concentra-se, então, no drama de uma personagem feminina, vivida por Cláudia Abreu, cuja família adere a Conselheiro e cujo marido adere às tropas republicanas.
É como se transpusesse para o enredo a ambiguidade de seu ponto de vista ideológico. Mas essa ambiguidade se dissolve na forma: o filme, "modernamente", vira uma novela da Globo, com conflitos de amor e um lindo rostinho em lágrimas.
Mais do que isso, transforma-se numa superprodução à brasileira, com cidade cenográfica e réplica perfeita da igreja construída por Conselheiro. A réplica é destruída com dinamite numa bela cena: é como se, para fazer um bom filme, fosse preciso destruir Canudos mais uma vez.
A modernidade triunfa, então, ainda que o sentido proposto seja o de uma crítica a seus "excessos".
As relações entre modernidade e sertão são mais complexas, mais ambíguas, e eu diria mais malandras, no filme de Bia Lessa, "Crede Mi". Aqui, a precariedade da filmagem é assumida de propósito. Há uma solidariedade na ruindade, por assim dizer.
Bia Lessa gravou em vídeo os ensaios de uma peça baseada em Thomas Mann, com atores sertanejos. Tudo é muito ruim e muito "mudéhno": os atores são ruins, mas viva os atores, já que o texto de Thomas Mann exige, ironicamente, uma ingenuidade tosca, à qual os movimentos oblíquos de câmera darão contraponto, garantindo uma ironia, um senso crítico, só que não sabemos contra quem. Moderniza-se a história, mas essa modernização é vaga, sem objeto, abstrata.
"O Sertão das Memórias" faz o contrário: arcaíza Glauber Rocha, num filme muito chato, ingênuo, que contrapõe o dragão da maldade contra a social-democracia, e projeta esse conflito não para o futuro, mas para um passado irreal.
Não é um filme brasileiro; é um filme clássico, é um clássico do cinema; qualquer esquimó, qualquer americano, e mesmo Shakespeare entenderiam do que se trata. "Os Matadores" é um filme universal, concretíssimo e grandioso. Desculpem-me pelo excesso. Mas é isso o que eu acho.

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