São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A teoria da saturação global

ROBERTO CAMPOS

"É um pouco cômico, mas também triste: aqueles que pregam a doutrina da saturação global estão lutando contra moinhos de vento, quando lá fora há alguns monstros que deveríamos trucidar."
Paul Krugman

Poucos economistas têm revelado tanta ousadia em destroçar mitos e tabus como Paul Krugman, professor do MIT (Massachusetts Institute of Technology) e de Stanford.
Quando estava na moda falar no milagre do crescimento asiático, Krugman passou a questionar a sustentabilidade desse crescimento.
O "milagre" seria resultado temporário da aplicação maciça de insumos convencionais -mão-de-obra barata e alta taxa de investimentos- propiciada não só pela poupança interna como por maciço ingresso de capitais. Mas a sustentabilidade do processo dependeria de eficiência continuada no uso desses insumos, eficiência que na prática foi diminuída por "sobreinvestimento" imobiliário, desordem no sistema bancário e excessiva concentração industrial em certos setores eletrônicos.
Isso não significa que o modelo exportador asiático tenha fracassado. Suas taxas de crescimento continuam respeitáveis. E não se pode negar ter sido quase milagrosa a redução da pobreza em vários países. Estima o Banco Mundial que, no período de 1975 a 1995, nada menos que 350 milhões de pessoas no leste da Ásia transpuseram a fronteira da pobreza, fato inédito em toda a história humana.
Krugman lembra também o suposto milagre soviético dos anos 50 e 60, baseado em maciços investimentos na indústria pesada, levando Kruschev a prever a superação do capitalismo. O modelo acabou implodindo sob o peso de ineficiências e desbalanceamento da economia em sacrifício dos consumidores.
Em artigo recente na revista "Foreign Affairs" (setembro/outubro de 1997), Krugman investe contra um outro mito em gestação: a teoria da "saturação global" ("global glut").
Nessa visão, o capitalismo seria exageradamente produtivo para o seu próprio bem. Devido a dois fatores -o acelerado progresso tecnológico e a industrialização dos países emergentes-, a oferta de bens tenderia a exceder cronicamente a demanda. Como resultado, sofreríamos de crescente e permanente desemprego. E as soluções seriam maior intervenção governamental para a criação de empregos (ou seja, uma ressurreição do keynesianismo) e a adoção do "emprego compartilhado", pela redução da jornada de trabalho.
Naturalmente, essa atoarda tem servido de excelente pretexto para reforço do protecionismo comercial e condenação dos malefícios da globalização.
O curioso é que nada disso é original. Pânicos semelhantes já ocorreram na história. Quando, como jovem diplomata, cheguei aos Estados Unidos, em 1942, uma das teorias que começava a sair da moda, eclipsada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial, era a teoria da "estagnação secular", propugnada sobretudo por Alvin Hansen, um discípulo de Keynes.
Segundo ele, a economia americana estaria sofrendo uma tendência de "estagnação secular", em virtude: a) dos limites à expansão territorial, pela exaustão de fronteiras; b) do fim das grandes ondas de inovação tecnológica que ocorreram na virada do século (eletricidade, automóveis, telefones etc.); c) do fato de as classes de renda alta pouparem parcela maior de sua renda, de sorte que a elevação ocorrida na renda por habitante não se traduziria em aumento proporcional do consumo per capita. Essas preocupações parecem hoje grotescas à luz da expansão econômica e tecnológica desde a Segunda Guerra Mundial.
O que está em moda hoje é o medo do "desemprego tecnológico". Trata-se também de receio antigo e recorrente.
Os "luditas", na Inglaterra, quebravam máquinas no começo do século 19, quando explodia a revolução industrial. A expressão "sabotagem" vem dos tamancos de madeira (sabots) jogados nos teares para travá-los. E o historiador F. Braudel lembra a comoção social em Paris quando os irmãos Perrier instalaram duas bombas elevatórias em Chaillot, em 1782, as quais, puxando as águas do Sena para alturas de 35 metros, tornaram subitamente desempregados 22 mil "carregadores de água". O automóvel matou a indústria de carruagens e despovoou as cavalariças, e a eletricidade liquidou as indústrias de velas e lampiões.
Hoje, o computador e os robôs são vistos como grandes ameaças ao emprego. Mas o que tem sido de sobejo historicamente demonstrado é que o progresso tecnológico tem virtudes autocorretivas. Pode gerar desemprego temporário e setorial, mas o aumento de produtividade, elevando a renda e baixando os preços, induz aumento da procura em variadas direções.
Assim, o desemprego industrial tem sido compensado pela extraordinária expansão de serviços em finanças, comunicações, turismo, saúde e lazer, assim como pelo surto de auto-emprego em microempresas individuais.
Os saudosistas da massificação industrial e do sindicalismo selvagem referem-se depreciativamente ao deslocamento da indústria para serviços como sendo uma "precarização" dos empregos. Isso certamente não é verdade no caso de telecomunicações, informática e finanças, em que os novos empregos são até mais bem pagos que as ocupações industriais tradicionais. Houve sem dúvida, nos Estados Unidos, ao longo desta década uma estagnação do salário real médio. Mas esta fase parece estar no fim, sendo já visíveis os sinais de uma retomada do ritmo de crescimento do salário real.
Krugman prossegue refutando os três argumentos em favor do mito da "saturação global": 1) a produtividade global estaria crescendo a uma taxa historicamente inédita; 2) a demanda nos países industrializados não estaria acompanhando a oferta de bens; 3) o crescimento das economias emergentes incrementaria muito mais a oferta global que a demanda global.
Sua refutação dessa visão pessimista é convincente. O crescimento da produção mundial, mesmo se incluídas as mais dinâmicas economias da Ásia, é de cerca de 4% ao ano, ritmo superior aos 3% das décadas de 70 e 80, porém inferior ao das décadas de 50 e 60.
Nas economias avançadas, a demanda de consumo tem se revelado surpreendentemente elástica, e o envelhecimento da população contribuirá para aumentar mais o consumo que a produção.
Quanto aos países emergentes, estão longe de contribuírem para a saturação global. Das dez maiores economias -Argentina, Brasil, China, Índia, Indonésia, México, Polônia, África do Sul e Turquia- nada menos que nove estão apresentando no momento déficits comerciais. Isso significa que a produção interna é inferior à procura. A única exceção é a China, que tem um saldo comercial grande e um pequeno saldo na conta corrente no balanço de pagamentos.
Quanto ao capitalismo brasileiro, infelizmente não pode ser acusado de excessiva produtividade nem de superávit de poupança, pois somos deficitários quer nas trocas comerciais, quer no balanço de serviços.
O socialismo entrou em colapso pela insuficiência de capacidade produtiva. Seria bizarro se o capitalismo estivesse ameaçado de morte pelo oposto -a saturação global. A verdade, entretanto, é que nem o progresso tecnológico, nem o excesso de capacidade produtiva condenam o mundo a um alto desemprego permanente.
Os desajustes que hoje ocorrem, sobretudo na Europa, são desajustes de transição, pela superposição de três fenômenos distintos: os efeitos de uma recessão cíclica, que só agora começam a ser superados; o desafio tecnológico, que exigirá retreinamento da força de trabalho; e a rigidez do protecionismo trabalhista, que diminui a mobilidade da mão-de-obra e sua flexibilidade de ajuste.
A globalização é um falso inimigo, que não pode ser combatido sem perda de eficiência. Se alguma coisa a experiência econômica nos ensina é que os países de economia fechada crescem menos e são mais vulneráveis que os de economia aberta. Cada vez mais o mundo será dos "rápidos" em perceber as mudanças e dos "flexíveis" para realizá-las.

Texto Anterior: Método de trabalho
Próximo Texto: Duas pessoas são mortas em Guarulhos; Bomba explode em caixa eletrônico no Rio
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.