São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
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Templos em ruínas

CLAUDE SANTOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"O relógio de parede numa velha fotografia -está parado?"
Mario Quintana

O cenário continua o mesmo. Silencioso.
Por uma daquelas estradas, abertas entre mandacarus, macambiras e favelas, pode surgir um andejo acompanhado de fiéis seguidores, fugidios das secas e das injustiças do mundo, carregando oratórios toscos, ladainhando antigas cantigas que ecoam e se misturam ao "mear" das cabras.
Alguém os fotografou um dia, durante a terrível seca de 1877, miseráveis, filhos do descaso.
Outros fotografariam as ruínas dos seus sonhos, dos seus templos. Mas o cenário e os personagens continuam os mesmos. O tempo não existe nessas paragens.
Se existisse, poderíamos dividir as fotografias de Canudos em dois momentos: inicialmente com as imagens de Flávio de Barros, feitas no final da guerra; depois, com os ensaios realizados na Canudos reconstruída no início do século.
Desta segunda Canudos, edificada por homens e mulheres que vieram a epopéia do Bom Jesus Conselheiro, as imagens começam a aparecer no cinquentenário do conflito, em 1947, com as fotografias de Pierre Verger.
O etnólogo e fotógrafo francês registrou o vilarejo num domingo, dia de feira, acompanhado de Odorico Tavares, na época repórter da revista "O Cruzeiro".
Retratou, principalmente, os sobreviventes. São imagens fortes, tensas. O tempo está riscado nas fendas das faces, mas fugidio, erradio, nos olhares.
Alguns anos depois, durante a construção do açude que afogaria as Canudos, muitos fotógrafos visitaram o palco da tragédia sertaneja. Entre eles Alfredo Vila-Flor (1964) e Jair Dantas (1968).
Alfredo registrou vários aspectos da vila. E, numa síntese, entrelaçou os tempos canudenses na fotografia de Manoelzão, sobrevivente do conflito, com os pés andejos sobre as ruínas de um templo destruído.
Outras ruínas seriam fotografadas por Jair Dantas. Desta vez, os escombros da Canudos reconstruída. O cenário abandonado, misturando ruínas antigas e recentes que adormeceriam no silêncio lodoso do lago.
Em 1969 vieram as águas. E outros aventureiros das imagens fizeram ensaios sobre o cenário e seus personagens, herdeiros da memória do triste episódio.
Quase cem anos depois da guerra, em 1996, a seca provocou o afloramento da ruinaria de Canudos.
E ficamos a fotografar estas ruínas recentes, templos perdidos no tempo.

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