São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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Um reservado universo das relações arcaicas

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Neste caso é difícil tergiversar. O rótulo, fato raro, cai realmente como uma luva: o que Lucia Castello Branco faz em "A Falta" é a mais pura e assumida literatura feminina -e de boa qualidade.
O livro se divide em duas partes. Na primeira, que dá nome à obra, uma reunião de pequeninos contos configura, na verdade, uma única história. Sua marca está na loucura que atravessa cada narrativa, loucura real de uma avó, que se reflete nas aflições e nos ódios das filhas ou netas. Todas elas, mulheres que sofrem "a dor de medo de ter medo".
Lucia Castello Branco constrói um universo de absoluta reserva e introspecção, onde se sobressai a busca da filha por uma mãe distante no tempo e no espaço. Mais do que o encontro, em última instância desimportante, reata entre suas figuras o poder das relações arcaicas, subjacentes.
Ao final do conto "Amartia", penúltimo da primeira parte, a narradora afirma, entre parênteses:
"(Assim passou minha mãe: de um jeito breve como só as mães pássaras são capazes de passar. Minha mãe papagaio de seda a voar longe os meus céus e eu de novo menina a saltar por prados e colinas, a colher flores para lançá-las ao longe, a chorar aos soluços para que nunca mais aquele travo na garganta me tornasse a sufocar)".
Para quem não enxergou até essa altura do livro a sombra de autoras que certamente rechearam a "angústia da influência" de Lucia, a segunda parte da obra não deixa margem a dúvidas.
Intitulada "As Assinaladas", compõe-se de sete encontros imaginários da autora com escritoras de grande peso, como Clarice Lispector, Florbela Espanca, Gabriela Llansol, Hilda Hilst, entre outras.
Professora de literatura e ensaísta -já publicou obras como "O Que É Erotismo" e "O Que É Escrita Feminina"-, Lucia utiliza seus conhecimentos para "dialogar" com elas ou simplesmente "frequentar" tais sumidades em seus próprios ambientes.
Assim, por exemplo, em "O Chapéu e o Desamparo", sobre Virginia Woolf, que termina da seguinte forma:
"Uma chuva fina escorria pela vidraça do café, e o chão se cobria aos poucos de uma película de gelo. Essa será para sempre a moldura em que Virginia se desenhará para meus olhos. Mesmo que tenha sido eu a primeira a reconhecer seu corpo frágil, alguns dias depois, às margens do Rio Ouse".
Com "A Falta", sua estréia ficcional, é como se Lucia Castello Branco batesse às portas de cada uma dessas predecessoras (seu matriarcado literário, afinal) para pedir-lhes licença, dizendo: "Agora quero entrar no clube de vocês". Certamente, pela maior parte delas, em que pesem prováveis restrições, não seria malvista.

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