São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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O amigo

LUIZ CAVERSAN

Rio de Janeiro - Fazia muito, muito frio naquela noite típica de julho, o inverno paulistano castigando todos com a garoa fina e cortante.
O clima era de emoção e havia uma certa tensão no ar; a mistura de trabalhadores e soldados não era propriamente pacífica naquele tempo. Temia-se por alguma confusão.
Mas não houve nada de errado. Pelo menos para os cerca de 140 mil trabalhadores que se reuniram no estádio do Morumbi no dia 3 de julho de 1980 para ver e ouvir João Paulo 2º.
Os tempos eram duros, ainda. Regime militar em sua fase final, as liberdades democráticas engatinhavam, eram frescas na memória de todos as lembranças das mortes nos cárceres.
Tanto que o momento mais comovente do encontro -que levou às lágrimas trabalhadores, jornalistas e até um soldado da PM que patrulhava o local- ocorreu quando o operário escolhido pela Arquidiocese de São Paulo para saudar o papa começou a chorar. O discurso de Valdemar Rossi lembrava a morte de seus colegas Santo Dias da Silva e Raimundo Ferreira Lima quando ele foi impedido de falar por causa dos soluços. Tentava retomar as palavras, mas não conseguia, sendo consolado então pelo próprio papa. Foi de arrepiar.
Mais ainda quando, como que fustigada pela imagem do operário chorando apoiado pelo papa, a multidão, de pé, começou a gritar "liberdade, liberdade!".
E o papa não decepcionou aquela gente toda. Fez uma defesa veemente do homem que trabalha, afirmou em tom firme que "a economia só é viável se for humana, para o homem e pelo homem". Conquistou a platéia.
Independentemente da fé cristã, naquela hora todos ali viram no papa um aliado, um protetor do trabalhador sacrificado por um regime político injusto e espoliativo.
Por um momento, pareceu que não havia mais a ditadura do regime, nem a do salário pouco, a da fome ou da falta de moradia digna.
E os trabalhadores voltaram para casa felizes. Eram amigos do papa.

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