São Paulo, domingo, 28 de setembro de 1997
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'Aposentado', Cid Moreira volta à Marcha da Família com Deus de 64

FERNANDO DE BARROS E SILVA
EDITOR-ADJUNTO DE OPINIÃO

Impossível ficar indiferente a essa foto. Na sua cafonice suprema, na sua pequena explosão de felicidade suburbana, ao mesmo tempo tão característica das nossas elites embriagadas de Miami, há todo um universo, um mundão inteiro que ficou represado, abafado pela postura militar, pela missão cívica e pela voz de trovão daquele que fez do "Jornal Nacional" o diário oficial do país durante pelo menos 20 anos.
Nessa imagem despretensiosa há mais verdade do que em todas as "notícias" que Cid Moreira transmitiu ao país à frente daquele cenário futurista e insípido, prestando-se anos a fio ao papel de "fiel servidor" (a expressão é dele) do laboratório de informações do nosso autêntico serviço de desinteligência.
Não deve ter sido à toa que essa foto foi escolhida para descortinar à sociedade, nos primórdios da revista, "o mundo de Caras". Arnaldo Jabor matou a charada ao escrever: "Sinto que ali está o mistério da burguesia brasileira". Da burguesia, sim, cujo caráter predatório aparece estampado ali em negativo, no exibicionismo confortável do lar, onde nada que se pareça remotamente com o Brasil deve penetrar para estragar a decoração de uma felicidade doméstica.
Mas também os mistérios da pequena-burguesia brasileira, que Cid Moreira soube decifrar tão bem. Foi ele, com sua maneira metálica e anestésica de nos apresentar as notícias, que transformou o mundo e suas mazelas num problema remoto, sempre "dos outros", do qual nós, a família brasileira, estaríamos para todo o sempre protegidos e imunizados. O "Jornal Nacional" de Cid Moreira foi a contrapartida eletrônica do mito da inviolabilidade do lar construído durante o "milagre".
Mas, como "o mundo mudou", conforme nos informa o presidente, o galã eterno das oito sumiu das telas. A realidade ficou "complexa" demais para as possibilidades de seu personagem.
Mas, pensando melhor, talvez não tenha sido um castigo. Talvez a grande realização de Cid Moreira tenha chegado agora, com a aposentadoria disfarçada. Podemos vê-lo mais à vontade, livre do fardo dos fatos, declamando editoriais bissextos ou derramando mensagens religiosas no "Fantástico".
Agora ele pode exercitar sua verdadeira vocação pastoral, comover senhoras pudibundas e reconciliar-se definitivamente com a "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Ao encerrar sua carreira, ele reata com suas origens, que ficaram esquecidas lá pelos idos de 64. É o epílogo feliz de uma novela de amor e patriotismo. Não merecíamos tanto. Boa noite.

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