São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 1997
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Topa tudo por um visto

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Só faltaram perguntar se eu não preferia ir no cargueiro de algum navio petroleiro, porque, de resto, o tratamento foi de uma gentileza ao estilo Schwarzenegger. Se bem que todo ano é a mesma coisa.
Nesta época do ano, as filas do lado de fora no consulado de São Paulo fazem parecer que estão rifando a Cindy Crawford pro primeiro que conseguir dizer Massachusetts sem cuspir.
Estou me referindo, obviamente, ao kafkiano ritual de conseguir um visto nos domínios diplomáticos americanos em Sampa. Pra dizer a verdade, nem estou muito indignado, porque foi a terceira vez e agora estou com mais prática no script: a gente faz o papel de subdesenvolvido implorando por um passe para o paraíso. Eles o concedem -depois de alguns entreveros, que é pra ter graça-, dando-nos mostras de sua infinita bondade e complacência para com os pobres tapuias.
O consulado emite vistos das 8h às 10h, horário mais exíguo do que o da mais preguiçosa repartição pública. Chegando lá, você entra naquelas filas em ziguezague, que não foram feitas para organizar a multidão, mas para deixá-la tonta. Tantas idas e vindas servem para minar eventuais resistências.
Chegando à sala onde o visto é concedido, vem a miragem: uma filinha de umas 30 pessoas. Os desavisados pensam que vai durar meia hora. Puro embuste.
Veja só: dos cinco guichês, só três funcionavam. Nos outros dois, as pessoas estavam em treinamento, informou-me um funcionário -devia ser algo como "usando a fila a seu favor; causa desidratação, formigamento e dor de coluna nos que esperam". Dos três bravos funcionários que estavam lá no batente, só um atendia à fila das 30 pessoas. Os outros dois atendiam a uma outra fila, misteriosa, onde hordas de japoneses entravam e saíam. Devia ser coisa da CIA.
O único cara que estava trabalhando parecia gostar de bater papo com quem ia pedir visto (fiquei imaginando que fazia aqueles jogos do Silvio Santos, tipo "Tem cinco minutos e não pode dizer sim, não e é, valendooo?. Se errar, fica no Brasil, a-ha-ha-ii, hi-hi-hi"). Talvez a imaginação fértil tenha ajudado a passar as quatro horas de pé na fila.
Quando finalmente chegou a minha vez, o cara do outro lado do balcão olhou meus papéis e disse, com aquele sotaque de quem está com um caroço de abacate no gogó: "Você se mudou pra Filadélfia? Então pode ir embora, não vou te dar o visto". Nos breves segundos que se passaram, em que meus caninos se afiavam e se preparavam para o ataque derradeiro na jugular do indivíduo, senti que todas as relações diplomáticas Brasil-Estados Unidos ficaram ameaçadas. Mas era só uma piada.
O melhor era ficar calmo e dar uma risada, porque não é culpa desses seres superiores a gente ter tido o azar de nascer no país errado. Até vir o longínquo dia em que o Brasil se tornará uma potência, o negócio é aguentar no osso e fazer de conta que a gente não se importa.
Contei também uma piadinha, sorrimos -grandes amigos.
Ano que vem, tem mais.

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