São Paulo, segunda-feira, 28 de dezembro de 1998
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A privatização da privatização

LUIZ PINGUELLI ROSA

O fim do ano foi marcado pela divulgação de fitas gravadas, embora ilegalmente, com conversas sobre as privatizações. A saída do ministro das Comunicações, levando de roldão o presidente do BNDES, cargo antes ocupado pelo ministro, não resolveu o problema. O fato em si apenas confirma o que se sabia: o processo das privatizações foi e é uma esculhambação, que fere a imagem do BNDES como órgão da administração pública.
O processo de privatização -acelerado em 1998-, como foi conduzido, só podia dar nisso; tratou o patrimônio da nação como um negócio particular entre agentes privados. Se de um lado há a propalada eficiência privada, de outro há um jogo com pressões psicológicas e blefes, usuais no pôquer, nos cassinos e nos negócios entre empresas, mas que não podem ocorrer na administração pública. O próprio conceito de preço depende das subjetividades do vendedor e do comprador, tornando difícil ser ético nos negócios públicos e, ao mesmo tempo, jogar o jogo dos negócios privados. Houve a privatização do processo de privatização.
É por essa razão que os EUA mantêm até hoje em poder do setor público uma capacidade instalada em usinas hidrelétricas maior do que a capacidade total do Brasil. Os EUA não privatizaram suas empresas elétricas; expandiram a geração elétrica privada mais do que a pública. Essa é uma forma de privatizar sem vender as empresas estatais.
A venda de um patrimônio de dezenas de bilhões de dólares em pouco tempo por um governo dificilmente pode ser séria. Não basta descarregar a culpa em bodes expiatórios e deixar o processo continuar, como ocorre.
São duas faces da mesma moeda o que se viu nos jornais num mesmo dia: o ministro das Comunicações, descabelado e depondo no Senado, levando e dando tiro para todo lado, e o ministro da Fazenda, bem-penteado, ao lado do "big boss" do FMI, como se nada estivesse acontecendo. Um ministro faz o papel de Mandrake; o outro, de Lotar. Um resolve tudo paralisando as pessoas com um gesto da mão, hipnótico; outro cai de pau em quem não for paralisado e ousar enfrentar.
Imagem pior é a do médico e do torturador na repressão: um aconselhava o preso político a confessar, senão o outro batia. De fato, os economistas neoliberais -aliás, os do governo- são engenheiros travestidos de economistas; ficarão na história como ficaram os militares da ditadura, pelo seu autoritarismo violento. Deram a alguns a missão de executar um serviço sujo, violento, para que os outros posassem de bonzinhos.
Para sermos coerentes, devemos condenar todo o pacote, as privatizações, a política econômica de endividamento crescente do governo e o acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), aprovado no apagar das luzes de 1998.
Sou contra as privatizações feitas, mas haveria processos melhores. Em vez de um "leilão" com poucos compradores, organizados em consórcios adrede preparados, estimulados pelo governo (que é o vendedor supostamente neutro), deveria ser adotado um processo transparente e explícito.
Uma possibilidade seria a pulverização das ações para o público, como ocorreu na Inglaterra, procurando criar uma administração da empresa sob controle de entidades como os fundos de pensão, associadas a grupos privados. Outra seria criar um núcleo de controle da empresa, com empresas convidadas a se associar por um acordo de acionistas, com objetivos transparentes e mantendo alguma presença do governo na direção, como no "noyau dur" da Elf Aquitaine francesa.
O instituto Ilumina, que reúne engenheiros do setor elétrico, tem discutido a primeira dessas alternativas. Mantivemos um debate, durante o governo Itamar, no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Dele participou ativamente Betinho, que defendia o caráter de empresa pública mesmo após a privatização. O ponto permanece atual; discute-se a privatização de Furnas do mesmo modo, na base da esculhambação.
A Coppe, por solicitações de comissão da Câmara, da Justiça ou de procuradores da República, fez estudos sobre as privatizações, desde a Light e a Vale do Rio Doce até, em 1998, o Sistema Telebrás e a Eletrosul. Foram verificados o uso de índices de risco, típicos de restaurante, diminuindo os preços nos leilões das duas últimas e a redução em bilhões de toneladas das reservas minerais da Vale.
O que aconteceu neste ano remete aos argumentos que levantei, na época da privatização da Vale, sobre a ligação entre a Merrill Lynch, contratada pelo BNDES para preparar a venda da empresa, e a Anglo American, forte candidata à compra. Após a polêmica causada pela divulgação do nosso estudo, o governo, por coincidência ou não, deu uma guinada e estimulou a entrada do consórcio da CSN.
Critiquei um sistema que leva a uma relação indesejada entre o setor público e o privado. Essa tem sido a regra nas privatizações. Basta examinar a história recente do país. Infelizmente, 1998 confirmou isso. O balanço não foi favorável ao consumidor, desde os "apagões" da Light e da Cerj no Rio, no início do ano, até o caos na administração das empresas de telecomunicações, revelado pela Folha agora em dezembro.

Texto Anterior: Passagem de ano
Próximo Texto: A grande prioridade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.