São Paulo, quarta-feira, 22 de abril de 1998
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Bud Powell une razão e sensibilidade

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em princípio, parece uma piada de mau gosto: um aluno de piano, cheio de dedos, mas com duas ou três doses de uísque a mais do que deveria, correndo e escorregando Bach afora. Não pode ser a sério (mas será que é?). Depois de um minuto de música, um compasso abrupto de silêncio: e nosso bêbado afinal consegue jogar o sapato apertado longe e volta para um mundo livre, só seu, onde o que soava como cacoete ou tropeço agora é a própria voz da alma, que é uma alma da música.
E depois disso só o que nos resta é voltar à faixa um, para acompanhar Bud Powell (1924-66) em seus prodígios de miséria e alegria.
"Como estudante do barroco, Bud Powell era um candidato lógico a se tornar um dos arquitetos do novo jazz", escreve o autor anônimo do texto da capa do disco, conseguindo errar cinco vezes numa frase: nem ele era um "estudante" nem muito menos do barroco (gostar de Bach é outra coisa) nem há "candidatos" à renovação da música nem teriam de ser "lógicos", e o jazz não é exatamente uma arquitetura nem mesmo em sentido figurado.
Ouvir Bud Powell como o Bach ou Scarlatti do bebop não faz justiça nem a Scarlatti nem ao bebop. É uma metáfora fraca e acaba atrapalhando a audição.
O Rafael do bebop seria mais aceitável, com a devida dose de ironia, se a gente pensar em Thelonius Monk como Michelangelo. Os dois contemporâneos dominam a cena do piano das décadas de 40 e 50; e não há um pianista de jazz depois deles que não seja, nalguma medida, "depois deles".
Bill Evans seria o terceiro nome dessa trindade profana, mas já pertence a outra geração e foi formado, ele também, por Monk e Powell.
Os dois têm estilos diferentes de desespero. Monk é saturnino, todo temor-e-tremor; Powell é um artista da alegria, uma alegria a despeito de tudo, no fim da linha, mas ainda assim do lado da vida. Sua capacidade incrível de ir criando arabescos, linhas aparentemente infinitas, cascatas de notas que vão se torcendo no ar sob a pressão do tempo não redunda nunca em cerebralismo nem em mero floreio.
Razão e sensibilidade não se distinguem mais nesse pianista atormentado, que, ao que tudo indica, só teve mesmo alguma alegria na frente de um piano nos intervalos entre internações, eletrochoques, surras da polícia, bebedeiras.
O novo CD, da série "Jazz Profile" traz 12 faixas remasterizadas, de gravações entre 1947 e 58. Nenhuma é inédita, mas hoje em dia não está fácil achar "Bud!" ou "Time Waits", e essa coletânea, então, pode ser vista quase como um serviço de utilidade pública. Os velhos aficionados, assim como os novos convertidos, podem se regalar, depois, com uma caixa de quatro CDs, "Complete Blue Note/Roots", lançada pela mesma gravadora.
Ninguém precisa escolher uma faixa favorita, em meio a esse embaraço de riquezas, mas eis algumas "candidatas lógicas": "Indiana", gravada em 47, em que o suposto "barroquismo" de Powell está bem à mostra, na profusão de vozes secundárias e nas cadências tradicionais, mesmo se traduzidas para um idioma mais próximo de Fauré do que de Handel.
"Time Waits", de 1958, o único "andante" do disco, bom para embalar dor de amor, até porque, no final, a música parece que faz tudo valer a pena. E uma gravação de 1951 de "A Night in Tunisia", cujo orientalismo chega aqui a verdadeiras vertigens de semicolcheias.
Como é possível estar tão à vontade nessa paisagem obsessivamente revisitada e estilizada? A resposta descreve o estilo de controlado descontrole de Powell e soa como uma bênção e um convite: a esta altura, nessa cidade, quem não quer passar uma noite, que seja, na Tunísia?
(AN)

Disco: Jazz Profile: Bud Powell
Pianista: Bud Powell
Lançamento: EMI/Blue Note
Quanto: R$ 18, em média

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