São Paulo, quarta-feira, 22 de abril de 1998
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Memórias da escuridão

CLÓVIS ROSSI

Madri - Volto ao Palácio de El Pardo, a 14 km de Madri, depois de 23 anos. É nele que o presidente Fernando Henrique Cardoso fica hospedado até viajar, sexta, para Salamanca e Santiago de Compostela.
Foi nele, há 23 anos, que o ditador espanhol Francisco Franco Bahamonde, "caudillo de España por la gracia de Diós", residiu, agonizou e morreu (em 1975).
Nos plantões que os jornalistas que acompanhávamos a agonia éramos obrigados a dar nas proximidades do Palácio, descobri o verdadeiro sentido da profissão. Os franquistas nos cercavam aos gritos de "vayanse buitres" (fora, abutres).
Os franceses até se ofendiam. Bobagem. Temos de fato um lado abutre, sempre à espera de um desenlace, qualquer que seja, mesmo daqueles que não nos agradam. É parte do jogo.
Todos os plantões eram à noite, às vezes na madrugada. Ficávamos à entrada do Palácio, na mais completa escuridão, quebrada, vez por outra, pelas luzes das câmeras de TV que se acendiam para iluminar algum personagem que chegasse.
Por isso, El Pardo era para mim sinônimo de coisa sombria, soturna. Faltavam luz elétrica e luz política.
Desta vez, fomos de dia, mais um luminoso dia de primavera na não menos luminosa Madri. Surpresa, pelo menos para quem, como eu, jamais voltara a El Pardo: o palácio é lindo, jardins bem cuidados, imediações com agradáveis restaurantes com mesas na calçada.
Virou ponto de atração turística, aberto que está à visitação pública.
Às vezes, pois, os "abutres" até que temos razão: só a volta da democracia, ano e meio após a morte de Franco, devolveu a luz a El Pardo. Hoje, parece até banal, mas não foi, não. As trevas duraram 38 anos, mais que os 21 de democracia já completados.
É um consolo verificar ao vivo e em cores que, por vezes, agoniados pelas agruras do dia-a-dia, não consigamos ver que o passado já foi pior.

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