São Paulo, sexta-feira, 12 de junho de 1998
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A bola e a bala

CARLOS HEITOR CONY

Uma velha canção que serviu de trilha musical para um dos filmes de Jacques Tati ( "As férias de M. Hulot") tem como título: "Que tempo faz em Paris?" A musiquinha é bonita, fica ressoando na cabeça da gente. E a pergunta se justifica: é difícil respondê-la. Oficialmente, estamos à véspera de um verão, as árvores estão verdes e as cerejas a cada dia ficam mais vermelhas, quase escuras. São sinais de luz e calor. Mas a temperatura é mais complicada.
Semana passada, gravando um programa com o Roberto Dávila ali perto de Notre Dame, as águas amarelas do Sena tentavam para um mergulho. Um calor desgraçado, desses que só há em Roma e em Paris, cidades sem mar, sem aquele cheiro de conchas e algas menstruadas que fica no ar e ao qual me habituei desde menino e do qual sinto falta.
Hoje, depois da ressaca do jogo de estréia, faz frio e venta, aquele mesmo vento parisiense que apagou a vela de Mimi no primeiro ato de La Bohème e fez Rodolfo exclamar na bela ária que todos identificam com um dos melhores momentos de Puccini: "Che gelida manina".
Bem, pelo início da crônica, falando do tempo, de Jacques Tati e de Puccini, parece que estou sem assunto e vai ver que estou mesmo. Daqui a pouco terá início o primeiro jogo da Itália e muita gente acha que, apesar da fase adversa, ela sempre aparece nas finais e é uma hipótese passável para a final. Ontem, depois do Brasil e Escócia, o jogo da Noruega e de Marrocos foi emocionante, ao menos para mim, que consegui a façanha de, por não saber mexer com o radinho que me emprestaram, peguei a transmissão de um locutor árabe. Só entendi uma palavra: Mustafá. Pelo número de vezes em que foi repetida, deduzi que se trata de um jogador, e dos bons, que ameaça ser uma surpresa como foi Eusébio, em 1966.
Parece mau agouro. Vestindo a camisa de Portugal, Eusébio desclassificou o Brasil naquela nefasta copa. Espero que Mustafa não repita a proeza, temos o Marrocos pela frente e fazer uma figa pode não ajudar, mas não prejudica.
De maneira geral, querendo ou não, os franceses foram obrigados pela força dos fatos a se preocuparem com o futebol. Leio hoje no "Figaro" o robusto ensaio de Jean d'Ormesson, da Academia Francesa, severamente intitulado "O ópio do povo". No subtítulo, outra pergunta difícil de responder: "O futebol conquistará o espaço antes ocupado pela religião e pelo patriotismo?" A matéria é ilustrada com a foto de um torcedor brasileiro, camisa amarela no peito e grito de gol na boca.
A bola substituirá a cruz e a bandeira? Por ela os povos se matarão um dia? Bem, tudo é possível Machado de Assis. Por ora, não devemos ser trágicos. Nada demais que um acadêmico francês, sob o peso da "coupole" e do fardão cenográfico, veja fantasmas à toa. Um bom francês, de cepa tradicional, tem entranhado nas veias o cerco de Verdun, a comuna de Paris, a guilhotina na praça do Povo.
Os argumentos do cara são óbvios, mas não chegam a assustar. Paixão mundial, mesclada de pátria e amor próprio, a bola no fundo é inocente, melhor do que a bala -seja ela contra ou a favor da gente.
E aí vai mais um esforço do cronista em favor da Copa-98. Citei Jacques Tati, Puccini e Machado de Assis. Citei também um acadêmico francês do qual não conheço a obra que não pretendo conhecer mesmo. Mas me perdôo por tudo isso. Só não me perdôo pelo "robusto ensaio" que deixei aí em cima e que vai ficar.

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