São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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Como perder uma década

ROBERTO CAMPOS

Em viagem de uma semana à Itália, aprendi muito da leitura de jornais sobre a psique italiana. O "Corriere della Sera" dava destaque a uma surpreendente declaração de Massimo d Àlela, o líder da refundação comunista, de que o desemprego na Itália seria insolúvel sem uma redução de custos salariais. Logo adiante, Ceasare Romiti, o líder industrial da Fiat, reconhecia em Karl Marx o mérito de, ao ameaçar o capitalismo de destruição, induzi-lo a criar os sistemas de seguridade social. Diverti-me com a imensa capacidade de metabolizar dos italianos: os comunistas metabolizaram o capitalismo e os capitalistas metabolizaram o socialismo. Além disso, a rigidez da economia formal é corrigida pela flexibilidade criativa da economia informal, na qual microempresas se tornaram engenhos de exportação.
O mesmo jornal noticiava outra originalidade. Um setuagenário nova-iorquino, após quatro anos de humilhante impotência, redescobrira a vitalidade perdida, devido a uma dose reforçada de Viagra. Quarenta e oito horas depois, abandonaria o lar deixando um recado: "scusa, cara, ma io voglio morire da stallone" (perdoa-me, querida, mas quero morrer como um garanhão). A esposa sexagenária estaria processando o marido fugitivo por perdas e danos e se dispunha também a processar o laboratório Pfizer por não ter etiquetado o remédio como "perigoso para o casamento". "Não se pode dar um fuzil carregado a quem não sabe usá-lo", vociferava a matrona abandonada.
De volta ao Brasil, fui surpreendido por uma originalidade política bem mais inquietante. Numa súbita reversão de clima, pela primeira vez uma pesquisa eleitoral indicava um empate técnico entre a dupla Lula-Brizola e FHC. Esvaiu-se minha ilusão de que o Brasil tivesse feito progresso irreversível na direção de uma cultura da estabilidade, da reengenharia do Estado, da integração internacional competitiva e da substituição da "cultura da dependência" pela "cultura da eficiência".
Seria uma ressurreição satânica retirarmos Lula e Brizola -esse casamento do analfabetismo econômico com o obsoletismo ideológico- do lixo da história para o proscênio do poder. Compreensivelmente, ambos lutam contra o neoliberalismo. É que são neoconservadores. Opõem-se globalmente às reformas, protestam contra a abolição dos monopólios estatais, pois as corporações burocráticas são suas pastagens políticas privilegiadas. E se esquecem de que os monopólios pouco ou nada rendem ao Tesouro, cujos dividendos são muitos inferiores às contribuições alocadas ao patrimônio privado dos fundos de pensão dos funcionários. Não querem a reforma administrativa, pois desejam conservar a estabilidade do funcionalismo, discriminando contra os trabalhadores do setor privado. Opõem-se à reforma do sistema previdenciário, que maltrata os trabalhadores comuns, desviando recursos para aposentadorias precoces e especiais. Lutam contra a desregulamentação trabalhista, esquecidos de que ela expeliu 57% da mão-de-obra para a economia informal, de sorte que há muitas garantias e poucos garantidos.
Os neoconservadores falam em democracia, mas têm cacoetes antidemocráticos: o monopólio estatal é uma cassação do direito de produzir; a previdência pública compulsória priva o trabalhador do direito de escolher a quem confiar a administração de sua poupança. A inflexibilidade da legislação trabalhista dificulta ou impede a livre negociação entre patrões e empregados. Não é surpresa que defendam a universidade pública gratuita, que subvenciona ricos e abastados, roubando recursos à educação de massa primária e secundária. Subjacente ao discurso neoconservador, há uma aversão ao lucro empresarial ignorando-se o fato de que o lucro de hoje é o investimento de amanhã e o emprego de depois de amanhã.
Quinze anos de convivência no Congresso com o PT e o PDT me ensinaram que o esporte preferido desses partidos é a briga com a lógica econômica. Falam na modernização da economia, mas insistem em manter instituições obsoletas (inclusive a Constituição Besteirol de 1988). Querem gerar empregos, mas rejeitam medidas para aumentar a empregabilidade. Essas exigiriam atitudes pouco simpáticas aos neoconservadores: a) privatização de estatais, pois o Estado perdeu capacidade de investir; b) alívio da carga fiscal, coisa incompatível com o Estado grande; c) abertura para investimentos estrangeiros; d) concentração de recursos na educação primária e secundária, para "tecnificação" do trabalhador.
Nenhuma questão tem sido mais demagogicamente explorada pelos neoconservadores do que a privatização de empresas em serviços estatais. Sentem-se eles intoleravelmente constrangidos ao ter que optar entre o Estado-social e o Estado-empresário, pois gostariam de ter ambos. Mas foi precisamente a fusão dessas funções que levou o socialismo marxista ao colapso. Cria-se uma névoa mental que obscurece o entendimento do real sentido das privatizações. Ao contrário das rendas privadas, em que o proprietário aufere a receita da venda do patrimônio, mas perde o fluxo de lucro, o Estado, ao privatizar suas empresas delas auferindo 35% dos lucros por via do Imposto de Renda. É o privilégio do gigolô.
Outra cretinice à mitologia neoconservadora é a obsessão com o "justo preço" ou "lucro adequado" das estatais. Isso implica ignorância dos mecanismos de concorrência dos leilões abertos. Nesses o único preço relevante é o que equilibra a oferta e a procura, pago por quem corre o risco do negócio. Os outros preços -o do tecnocrata que quer preservar seu emprego, o do político que tem na estatal uma fonte de poder, o dos consultores que avaliam tecnicamente o fluxo de caixa, mas não apostam o seu dinheiro- são elementos meramente informativos. Se esses preços forem superiores ao preço que equilibra a oferta e a procura, haverá ágio. Se superiores, o leilão fracassará. A rigor, as privatizações brasileiras teriam sido muito mais rápidas antes da crise da Ásia e da privatização das telecomunicações européias, se o governo simplesmente leiloasse as empresas "pela melhor oferta".
A mecânica de dupla avaliação da Lei de Desestatização justificava-se em 1990 porque a privatização ainda era palavra feia e o presidente Collor não parecia um asceta financeiro. Mas as avaliações, assim como o preço mínimo fixado pelo governo, não têm o dom de revogar a lei da oferta e da procura no mercado. Retardam as privatizações e aumentam as despesas de venda, o que nada tem a ver com a ética patrimonial. A utilidade dessas avaliações e auditorias não está na determinação do preço e sim na moldagem estrutural das empresas e no estudo da experiência de regularização internacional. Se adotado o princípio da "melhor oferta", poderíamos ter leiloado mais rapidamente o sistema elétrico e telefônico, antes da crise da Ásia e da privatização das telefônicas européias, fatores que diminuíram o número de competidores e, portanto, o preço potencial.
Na realidade, o crime contra o Tesouro foi praticado precisamente por Lula e Brizola, cujas campanhas político-partidárias contra a privatização da Light e Vale do Rio Doce, conduzida a despeito de sentenças judiciais, elevaram o risco dos financiamentos e afugentaram potenciais compradores. Se o Ministério Público se dedicasse a fazer cumprir a Lei de Desestatização, em vez de sabotá-la com liminares, deveria promover a responsabilização desses políticos por perdas e danos causados ao Tesouro Nacional.
Apesar de vários erros, de frequente 'descoordenação' de iniciativas e lentidão nas propostas reformistas, a soma algébrica das ações de FHC permanece bastante positiva. Criou-se uma cultura da estabilidade. O Brasil voltou ao radar dos investidores, inferior apenas à China na atração de capitais estrangeiros. Foram tirados esqueletos do armário, estancando-se a sangria dos bancos estaduais, extinguindo-se monopólios estatais, denunciando-se a inviabilidade atuarial e as injustiças da Previdência Social, enfatizando-se o desperdício das universidades públicas gratuitas e procurando-se combinar minidesvalorizações cambiais com reformas estruturais redutores do custo Brasil.
Mas a maior de todas as contribuições foi o aumento da "previsibilidade" da política econômica, que hoje marcha no sentido da modernização capitalista e não da restauração do populismo dirigista, que levou o Brasil à falência. De outro lado, a redução dessa previsibilidade seria o principal aspecto negativo da ascensão da dupla Lula-Brizola nas pesquisas. Se essa tendência se confirmar ou agravar, os resultados seriam os seguintes:
- Fuga de capitais
- Interrupção das privatizações
- Paralisação de investimentos indiretos
- Aumento de incertezas quanto à estabilidade monetária e à política cambial.
Seria uma receita perfeita para perdermos uma nova década. "Pode haver muita ruína num país", dizia Adam Smith. Não se deve subestimar a capacidade de ruína da dupla Lula-Brizola, apoiada em partidos de filosofia antimercado e ímpetos de radicalização. Brizola arruinou o Estado do Rio de Janeiro, afugentando as multinacionais e fazendo dos morros um santuário de traficantes. Lula, por seus cordões umbilicais com a CUT, é co-responsável pela desindustrialização do ABC paulista, de onde indústrias emigraram à busca de climas mais "market friendly". Nada indica que sejam capazes de repetir semelhante façanha ao nível nacional. "Quod Deus avertad"!...

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