São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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O tucano de bonezinho

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Coisas muito estranhas estão acontecendo com meu amigo tucano. Habituado a vê-lo entre garrafas de Bordeaux e delicadas fatias de fois-gras, com seu simpático cashmere amarelinho, encontro-o agora de bonezinho verde-amarelo e camiseta oficial da Nike. Bebe um prosaico chope no bar da esquina, de olho numa TV de 14 polegadas, cercado de alegres torcedores.
Mal consumou-se a vitória brasileira contra a Escócia e está ele ali, confraternizando com o povo. Ele, o mesmo que na Copa de 94 acompanhou tudo a goles de scotch, instalado nos fofos sofás dos home-theaters da elite paulistana, com som estéreo e tela gigante.
Aproximo-me surpreso, e antes que possa dizer alguma coisa recebo o abraço caloroso. Percebo, pela primeira vez, que meu amigo tucano também é capaz de transpirar.
"Você não vai torcer pela França?!" -pergunto com ironia.
"Não enche o saco", responde com a grossura do populacho.
O que terá acontecido com meu amigo tucano? Será que são os resultados das pesquisas? Será que está cansado de tanta sofisticação? Será que já está em plena campanha eleitoral?
Parece que sim. Afinal, com seu esplêndido bico, ele é uma espécie de reencarnação da grã-fina com narinas de cadáver. Aquela que o Nelson Rodrigues encontrava no Maracanã perguntando "quem é a bola?"
Por que agora tamanha euforia com o futebol? Será que estaria mudando o voto? Bem, se o meu amigo Arnaldo Jabor anda possesso com FHC, então tudo é possível -chego a imaginar.
"O Jabor está exagerando", diz ele, adivinhando, como sempre, meus pensamentos. "É claro que estamos precisando de um perfil mais popular, mas o Fernando vai chegar lá", garante.
Talvez. Quem imaginaria, entretanto, que chegaríamos a junho com um quadro tão disputado? O Brasil, realmente, não é um país para amadores. É verdade que muita água ainda irá rolar até que as coisas possam estar mais definidas. Mas isso não significa necessariamente que o "Fernando", como diz meu amigo, íntimo do tucanato, terá uma vida melhor.
Ademais, como escrevem os editorialistas, há a instabilidade asiática. A China pode se estrepar. O Brasil pode ficar sem dólar. E aí, o que o "Fernando" vai dizer em casa?
"O que está pensando aí, rapaz?" -berra meu amigo tucano, retirando-me do devaneio. O boteco ferve. Risos e gritaria.
"Nada, nada" -respondo, enquanto ele pede mais um chope e observa as curvas da mulata que passa enxuta, com seu patriótico "colant" verde e amarelo.

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