São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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"W.O."

MARILENE FELINTO

A catedral de Notre-Dame, uma das igrejas mais lindas do mundo, sólida obra da arquitetura gótica, magistral em seus arcos pontiagudos, suas abóbadas, seus vitrais e rendilhados geniais, e construída em Paris entre os séculos 12 e 13, parece hoje instalada ali para humilhar as civilizações seguintes a ela.
Entre as civilizações seguintes, estamos nós neste fim de século, a nossa concepção de sociedade que faz girar bilhões de dólares num evento que não passa de 22 homens correndo atrás de uma bola de borracha (de couro, quer dizer, desculpem), para centenas de milhões de outros homens assistirem e uns outros poucos escreverem sobre a cena, fotografarem, filmarem.
Tudo isso enquanto milhões de outros terceiros homens, em dezenas de lugares do mundo, morrem de fome e pragas diversas. A catedral de Notre-Dame nos humilha, bem como a astronomia, a cerâmica, a tapeçaria e a ourivesaria dos povos árabes da Antiguidade, hoje reunidas em museu magnífico como o do Instituto do Mundo Árabe, por exemplo, também aqui em Paris.
Parece que nada guardamos dos astrolábios dos antigos. Seguimos às cegas, nós e nosso computador, nossas revolucionárias descobertas genéticas, nossa tecnologia de ponta e seu reverso (a poluição que criamos, as doenças incuráveis, os vírus novos que surgem de nosso cotidiano avanço história a dentro). Seguimos às cegas, nós e nosso futebol, nosso obscurantismo de chuteiras.
A expressão "W.O'", em futebol, significa "walk over", passar por cima, cair fora, dar o fora, em tradução livre. É usada quando um time abandona a partida ou não comparece ao jogo por algum motivo. O time adversário ganha, então, "por W.O.".
O último W.O. memorável aconteceu numa Copa, me disseram (talvez em 1990), quando o sheik de um país árabe mandou o time sair de campo porque achou que o juiz era ladrão. O jogo acabou. W.O. Achei perfeito.
Se o W.O. fosse mais usado, diminuiria a força do futebol. O dinheiro do mundo seria usado em causas mais humanitárias e sólidas, quem sabe, do que em prol do obscurantismo da nossa época de chuteiras.
Mesmo na França antifutebol lançaram uma antologia intitulada "Futebol e Literatura", com grandes nomes da literatura universal que trataram do tema.
Todos homens (com exceção da escritora francesa Marguerite Duras), entre eles Albert Camus, Camilo José Cela, Peter Handke, Harold Pinter, Rilke, Carlos Drummond de Andrade, George Orwell e Nietzsche.
Sobre o Brasil (chamado de Brééésilll), a antologia diz: "Pour le Brééésilll (...), le foot est une ressource -comme le café ou le latex-, une religion et une politique." Em tradução livre: que o Brasil precisa dar um W.O. a si mesmo, porque lá futebol, café e borracha é tudo a mesma coisa: um recurso econômico em que só um lado ganha dinheiro.

E-mail: mfelinto@uol.com.br

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