São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998
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Dependência ou morte

GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fiquei surpreso com a entrevista de Thomas Skidmore (Mais! de 17/05/98), rememorando a carreira de FHC: do Cebrap ao Palácio do Planalto. Minha impressão foi a de estar lendo o desbundado Waldo Frank, o brasilianista udigrudi, padrinho de Richard Morse, que nos ensinou sobre o poeta e diplomata Vinícius de Moraes, aposentado compulsoriamente pela ditadura com salário merreca; no entanto, estava eu na verdade lendo o historiador Thomas Skidmore, que faz parte da ilustre patota de Lincoln Gordon e Henry Kissinger.
Testemunha privilegiada do percurso jubiloso de FHC, Thomas Skidmore traçou-lhe um perfil psicológico à maneira de Sérgio Buarque de Holanda no livro clássico "Raízes do Brasil": a síndrome personificada do homem cordial. Em vez de discordar e dizer não, o tipo brasileiro prefere usar a palavra "interessante", segundo o retrato de FHC feito por Skidmore.
A ciência política do professor tucano começou com a dissidência partidária do retorno à pureza bolchevique do antigo MDB, o que implicou a deselegante derrubada do caipira Orestes Quércia, por quem o antropólogo Darcy Ribeiro tinha em São Paulo admiração -admiração mameluca pelo imemorial da América Latina, "pátria grande". Depois da dissidência com o PMDB, surge no cenário político o "homo tucanus": o protótipo do "magister" que se vale da autoridade intelectual como argumento de dominação política.
Não é por acaso que, no depoimento de FHC ao jornalista Roberto Pompeu de Toledo ("O Presidente segundo o Sociólogo", Cia. das Letras, R$ 26,00), o ano de 64 não significa quase nada, na razão inversa da importância atribuída a Ulisses Guimarães e Franco Montoro, como se fossem os dois dióscuros geniais da abertura política durante a década de 70. Curiosamente, o nome de Severo Gomes vai pouco a pouco sendo apagado da memória de FHC, talvez por causa do nacionalismo do empresário paulista, que não recebeu tanto badalo e prestígio por parte da mídia e da universidade em São Paulo.
A disciplina "história das idéias" nos ensina muitas coisas. Thomas Skidmore assinala o clima de capitania hereditária privatizada na "carrière" intelectual de FHC: em 1969 a Fundação Ford aplicou mais subsídios no Cebrap do que a embaixada americana. Depois de 1969 Skidmore convive com FHC na Smithsonian Institution, Washington, e em Princeton, presenciando nos EUA as peripécias da maior façanha publicitária da história das ciências sociais: a "teoria da dependência".
A boa nova, segundo Skidmore, apresentada pelo sociólogo FHC à comunidade acadêmica nos EUA, depois de realizada a leitura materialista no seminário de Marx em Higienópolis, era sobre a passagem da dependência à "associação dependente", em que os EUA apareciam como interlocutores privilegiados dentro do longo e subalterno processo colonial. Enfim, a análise do presente para o passado constata o apelo libidinal contido na teoria da dependência: a esperança de sermos amados pelos EUA, assim como a exclusão da possibilidade do amor recusado por parte do "hermano" do norte.
Na construção, racional e weberiana, desse projeto pessoal irrompe às vezes o fator emocional, espécie de transe iluminista à Simão Bacamarte, confundindo a hora de falar com a hora de calar, sobretudo depois que desapareceu o amigo Serjão Motta: a certeza de que político calado é sinônimo de cadáver. Afinal, são as palavras que governam os homens e as mulheres.
Um leitor atento e perspicaz poderá detectar no depoimento de FHC ao jornalista, afora a batalha por assumir o carisma, o arrependimento de ter embarcado no desejo fatal da reeleição. Com esse imperativo na agenda, FHC exibirá publicamente a sensação psicológica de que ele ainda não vivenciou ou curtiu os prazeres da Presidência da República pela primeira vez.
Um autor de sociologia não pode fazer vista grossa ao destino do conceito, por menos hegeliano que seja. O plano real pode ser visto como instrumento de internacionalização dos patrimônios bioenergéticos do país, eis o elemento essencial, e não o "Erzats" em cima do fim da inflação. Esta, de resto, parece ter sumido do mapa em vários lugares do mundo.

Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.

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