São Paulo, domingo, 14 de junho de 1998 |
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A nostalgia do totalitarismo
PIERRE LÉVY
É certo que Estados e potências econômicas se entregam a violações de correspondência, a furto de dados, a manipulações ou a técnicas de escamoteação da verdade no ciberespaço. Nada de radicalmente novo. Isso era praticado anteriormente e ainda se pratica por outros meios: pela coerção física, pelo correio, pelo telefone ou pelos meios de comunicação tradicionais. Sendo as ferramentas da comunicação numérica mais potentes, elas permitem que se pratique o mal numa escala mais elevada. Mas há de se notar que os poderosos instrumentos de cifragem e decifragem, agora acessíveis aos particulares, permitem fornecer uma resposta parcial a tais ameaças. É verdade que o ciberespaço constrói um espaço universal, mas, como tentei demonstrar, trata-se de um universal sem totalidade. Abordamos aqui o fundo do problema. O que realmente apavora os "críticos" profissionais não é precisamente a destotalização em curso? A condenação de novos meios de comunicação interativos e transversos não faz eco a um bom e velho desejo de ordem e autoridade? Não satanizamos o "virtual" a fim de conservarmos inalterada uma "realidade" solidamente instituída, legitimada pelo melhor "bom senso" do Estado e da mídia? Aqueles cujo papel consistia em impor limites e territórios estão ameaçados por uma comunicação transversal, multipolar, que rompe compartimentos. Os guardiães do bom gosto, os defensores da qualidade, os fatais intermediários e os porta-vozes vêem as suas posições ameaçadas pela criação de relações cada vez mais diretas entre produtores e usuários da informação. Textos circulam em grande escala pelo mundo inteiro por meio do ciberespaço, sem jamais passarem pelas mãos de algum editor ou redator-chefe. Em breve, o mesmo ocorrerá com a música, o cinema, os hiperdocumentos, os jogos interativos ou os mundos virtuais. Como já é possível difundir novas idéias e experiências sem passar pelos comitês de leitura das revistas especializadas, todo o sistema de regulação da ciência está na berlinda. A apropriação de conhecimentos poderá se libertar da camisa-de-força das instituições de ensino, uma vez que as fontes vivas do saber serão diretamente acessíveis e os indivíduos terão a possibilidade de integrar-se a comunidades virtuais consagradas ao aprendizado cooperativo. Os médicos deverão fazer face à concorrência de fontes de dados médicos, de fóruns de discussão, de grupos virtuais de auxílio mútuo entre pacientes acometidos pela mesma doença. Inúmeros cargos públicos e profissões estão ameaçados. Mas, se eles souberem reinventar suas funções, convertendo-se em animadores do processo de inteligência coletiva, os indivíduos e os grupos que antes eram intermediários podem ver seu papel na nova civilização tornar-se ainda mais importante que no passado. No entanto, caso eles se apeguem a suas antigas identidades, é fácil prever que sua situação será insustentável. O ciberespaço não altera o fato de que há relações de poder e desigualdades econômicas entre os humanos. Mas, para citar um exemplo facilmente compreensível, o poder e a riqueza não se distribuem nem se exercem da mesma maneira numa sociedade de castas, com seus privilégios hereditários, economicamente bloqueada pelos monopólios estatais, e numa sociedade em que os cidadãos são juridicamente iguais, com leis que favorecem a livre empresa e que lutam contra os monopólios. A "crítica" se crê legitimada a denunciar um "totalitarismo" ameaçador e a se fazer porta-voz dos "excluídos" -de quem, aliás, ela jamais pede a opinião. De fato, a pseudoelite "crítica" é nostálgica de uma totalidade sobre a qual mantinha o domínio; mas esse sentimento inconfessável é negado, invertido e projetado sobre um outro aterrador: o homem da cibercultura. As lamúrias sobre o declínio dos universos semânticos e das totalidades domináveis (vividas como a clivagem da "Cultura") ocultam a defesa de poderes. Tudo isso nos retarda na invenção da nova civilização do universal e não nos ajuda em nada a tomar o rumo mais humano. Tradução de José Marcos Macedo. Texto Anterior: A feminização do trabalho Próximo Texto: Um gênio em formação Índice |
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